Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
<strong>CULTURA</strong><br />
E<br />
CONFLITO<br />
A LAICIDADE<br />
<strong>CULTURA</strong>L<br />
de gasto quando a palavra, em cultura, é investimento. As leis de<br />
incentivo, como <strong>def</strong>inidas na legislação brasileira, impedem pelo menos<br />
em parte esse obscurantista recurso burocrata do Estado. Os recursos<br />
existentes e destinados à cultura são para serem efetivamente aplicados<br />
— e com as leis de incentivo de fato o são. Falhas e desvios, demasiado<br />
evidentes 47 , são para ser corrigidos na trilha dos dois únicos modos de<br />
política cultural hoje admissíveis para o Estado: o da coordenação e o da<br />
cooperação cultural. Inaceitáveis são as tentativas recentes de secretarias<br />
de estados e municípios, e mesmo do ministério, de apropriar-se de<br />
parte e da maior parte dos recursos que a sociedade civil havia<br />
conquistado com as leis de incentivo. Leis de incentivo não são para o<br />
Estado, que não detém mais o monopólio da centralidade cultural, não<br />
se <strong>def</strong>ine mais por uma cultura unívoca e não mais tem nem condições<br />
econômicas para atender ao florescimento das singularidades, nem de<br />
distinguir entre o que fazer e o que não fazer, o que apoiar e o que não<br />
apoiar. A situação decorrente de um estado de coisas marcado pela<br />
existência de leis de incentivo não é ideal, nem mais ideal que aquela<br />
verificada quando havia uma razão de ser para uma política cultural de<br />
conteúdo por parte do Estado. Nem menos ideal. O conflito entre as<br />
singularidades não é assim dirimido, nem eliminado. O conflito<br />
continua, sob outra figura. O conflito é inerente à ideia de cultura que<br />
não se apoia no hábito mas na única coisa que a rigor justifica a cultura,<br />
ou a parte excelente da cultura: a crítica, o questionamento, a procura.<br />
Já é um ponto pacífico que o Estado deve ser leigo, neutro em<br />
relação à religião. Ou era, até há pouco tempo: investidas contra esse<br />
princípio estão sendo feitas insistente e consistentemente e não apenas<br />
no longínquo oriente que, em tempos de globalização, já é aqui, ele<br />
também — tanto o oriente quanto o Haiti. O próprio presidente da<br />
república brasileira que sancionou a primeira lei de incentivo fiscal à<br />
cultura, que leva seu nome, sancionou também uma outra que manda<br />
inscrever em todas as cédulas do dinheiro simbólico em circulação neste<br />
país a expressão “Deus seja louvado”, cópia adaptada do refrão<br />
consagrado naquele que ainda é o único dinheiro verdadeiro do mundo,<br />
o norte-americano. O leilão das ondas da televisão e do rádio para os<br />
grupos de proselitismo e exploração comercial da religião são outro<br />
atentado à laicidade da ideia da coisa pública, do espaço público no<br />
Brasil. Mas, digamos que dentro de certos limites, embora cada vez<br />
mais estreitos, a ideia da neutralidade do Estado diante da religião está<br />
47 Um deles é a concentração dos recursos pelas próprias corporações que recorrem aos<br />
incentivos e criam seus centros de cultura, em concorrência desleal com instituições<br />
culturais tradicionais que se solidificariam se pudessem contar com análogos recursos.<br />
82 A <strong>CULTURA</strong> E <strong>SEU</strong> <strong>CONTRÁRIO</strong>