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de todo com a cultura, da qual tem vários traços e da qual no entanto<br />
se afasta, nem de todo com a arte, com a qual compartilha vários<br />
componentes sem no entanto com ela se identificar de todo. O cinema,<br />
sobretudo o cinema comercial norte-americano, tanto quanto a novela<br />
brasileira, é acima de tudo uma obra de cultura. A arte conceitual (a<br />
arte baseada na ideia, não na produção de um objeto, exemplo: a ideia<br />
de que é arte o gesto de andar reiteradamente por um terreno, num<br />
percurso restrito, de ida e volta, até que sua grama alta se abaixe sob a<br />
ação das pisadas; o sulco assim aberto, e que ninguém além do artista<br />
viu ser aberto, é a única coisa que se aparenta a uma obra de arte, sem<br />
o ser; o gesto como um todo é que deve ser visto como arte, tal como<br />
o entende o artista ainda que ninguém possa ver o que ele fez e ainda<br />
que a foto que se possa tirar do resultado daquelas pisadas não seja<br />
uma obra em si, e nem o registro daquela arte, mas apenas o registro<br />
do que restou daquela obra) é, neste esquema, e radicalmente, arte.<br />
Entre uma extremidade e outra encontram-se obras ou fenômenos<br />
que ocupam um ponto cego, um ponto onde não posso divisar, na<br />
coisa, o que ela tem de cultura e o que tem de arte, um ponto onde o<br />
que ela tem de cultura transforma-se em arte e vice-versa, um ponto<br />
onde os traços de cultura seguidamente transformam-se em traços de<br />
arte para em seguida mostrarem-se outra vez como de cultura e logo<br />
depois outra vez em de arte, repetidamente, não se exibindo nem como<br />
uma coisa, nem como outra, mas sem ocultarem de todo os fantasmas<br />
de uma coisa e outra. Vários filmes de Woody Allen, como Tiros na<br />
Broadway e Manhattan, estão nesse ponto cego ou ponto de fuga da<br />
cultura ou da arte. Não creio ser rentável, para a compreensão do que<br />
aqui está em jogo, imaginar toda uma escala de graduação, uma régua<br />
semântica da cultura (ou da arte), segundo a qual fosse possível<br />
catalogar todas as obras e fenômenos. A decomposição do mundo<br />
constituído pelas obras humanas (o mundo Cultural, com esse C<br />
maiúsculo, como tradicionalmente empregado em oposição ao c<br />
minúsculo da cultura representada pelo teatro, pela literatura etc.) em<br />
pares antagônicos, na expressão de Simmel, é mais proveitosa, num<br />
primeiro momento, para a ação em política cultural. Não creio que essa<br />
régua seja rentável, nem que ela corresponda à “realidade”. O mundo<br />
não é feito (o tempo todo, sob todos os aspectos, embora possa sê-lo<br />
em algum tempo, sob algum aspecto) por coisas que são ou apenas<br />
isso, ou apenas aquilo, por exemplo pessoas boas (inteiramente e<br />
sempre boas) e más (inteiramente e sempre más); todos (ou quase<br />
todos, ou a extremada maioria) são bons e maus em momento<br />
alternados. Mas esse raciocínio não é transplantável para o domínio da<br />
152 A <strong>CULTURA</strong> E <strong>SEU</strong> <strong>CONTRÁRIO</strong>