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Mas, se o habitus tem algum lado positivo, ele não vem<br />
desacompanhado de um vasto cenário negativo, numa formulação<br />
paradoxal no entanto própria da cultura e da qual ela não poderá<br />
libertar-se jamais, ao que tudo indica. Felizmente, é preciso<br />
acrescentar: é daí que provém sua vida. Mesmo antes de conhecer<br />
essas formulações de Bourdieu já era para mim uma evidência que<br />
o hábito cultural — em português mesmo e nessa expressão que a<br />
rigor, nas pegadas de Bourdieu, constitui uma contradição nos<br />
termos —, é um dos principais entraves para o recurso à cultura<br />
como instrumento de desenvolvimento humano. Já que Bourdieu<br />
recorreu à expressão latina, será interessante verificar o que ela<br />
contém de sentido próprio em sua cultura de origem, de modo a<br />
ampliar a compreensão do que o termo traz para esta cultura de agora.<br />
Que o recurso de Bourdieu à palavra latina não foi aleatório, ocasional<br />
e desinformado mostra-o o fato de, no habitus, privilegiar ele a ideia de<br />
disposição do corpo (a hexis corporal, sendo hexis a palavra grega da qual<br />
habitus é a versão latina), noção de fato envolvida na acepção latina da<br />
palavra e que Bourdieu emprega para explicar o estilo próprio de um<br />
indivíduo ou grupo no entanto submetido a um dado habitus (cada<br />
um, por seus gestos e posturas, revela inconscientemente o habitus<br />
profundo que o constitui mas o revela tal como esse habitus é por ele<br />
representado). E em latim, então, a palavra habitus já contém uma série<br />
de sentidos antitéticos, transmitida embora inconscientemente de geração<br />
para geração e de uma língua de extração românica para outra língua<br />
de extração românica. Habitus é o tido, o havido, o possuído mas é<br />
também o que é recebido, o que é tratado e recebido tal como foi<br />
tratado (por outrem, isto é). Em latim, se o habitus pode ser neutro (um<br />
bom hábito ou um mau hábito, um bom trato ou um mau-trato, no<br />
sentido em que por exemplo se diz de um cavalo que ele é mal tratado),<br />
ele é ora francamente positivo (“a coisa útil à República”, como aparece<br />
em Tácito: Publice usui habitus), ora negativo ou para o negativo tendendo<br />
(como em Cícero, que fala de um Habitus orationis, ou “enfeite do<br />
discurso”, quer dizer, aquilo que no discurso é acessório, inessencial).<br />
Ainda em Cícero fica evidente que o habitus é a facilidade firme e<br />
constante para fazer obras, tanto virtuosas como viciosas. Minha<br />
própria sensação do hábito cultural como algo particularmente<br />
complicado e potencialmente indesejado na prática da cultura, para<br />
dizer o menos, pode resultar de uma formação pessoal fortemente<br />
enraizada na modernidade, essa modernidade da qual um dos princípios<br />
motores é mudar sempre, fazer sempre de outro modo: ser de seu próprio<br />
tempo muito mais, muito acima e muito antes de ser do tempo do<br />
NEM TUDO É <strong>CULTURA</strong> 29<br />
DISPOSIÇÕES<br />
ANTI-HABITUS