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A obra de cultura é uma obra coletiva; no processo, o nós é mais<br />
determinante que o eu: não quer dizer que nela a participação do<br />
indivíduo como indivíduo seja inexistente ou desimportante, mas a<br />
obra de cultura não resulta dele, não cabe ao indivíduo e não cabe no<br />
indivíduo: não depende do indivíduo a realização de uma obra de<br />
cultura. Inversamente, a obra de arte é determinada em última instância<br />
por um indivíduo; o conjunto final de uma obra de arte (um certo filme<br />
— não todo filme mas algum filme) pode trazer a marca de vários<br />
indivíduos ou, bem mais raro, de um coletivo (a soma de várias marcas<br />
individuais não resulta em marca coletiva — não aqui) mas, na obra de<br />
arte, o determinante é um indivíduo: correntes do pensamento<br />
sociológico de inspiração marxista, com curso até os anos 60 do século<br />
20, preferiram falar em obras coletivas de arte ou em alguma arte que<br />
derivaria de uma ação e uma autoria coletivas visando com isso diminuir<br />
a importância do sujeito individual criador e em contrapartida ampliar<br />
a do sujeito coletivo (no limite, a de uma classe social), como seria o<br />
caso do cinema e teatro. Interpretação falaciosa: um filme de Fellini é o<br />
que é por ser de Fellini: quando na abertura do filme vem dito que se<br />
trata do Casanova de Fellini, é exatamente disso que se trata: uma visão<br />
que o indivíduo Fellini, a pessoa Fellini, tem desse tema, independente<br />
dos demais colaboradores que perfazem o total da obra e que, sem<br />
Fellini, sequer a teriam iniciado (contrariamente, quando um filme norteamericano<br />
traz, na abertura, uma fórmula análoga, dificilmente ela está<br />
sendo usada de modo correto: as condições de produção no sistema<br />
cinematográfico norte-americano são tais (interferência do produtor<br />
na escolha do tema e na montagem, interferência do público-teste na<br />
edição final da película etc.) que a ideia da personalidade autoral é a<br />
exceção (caso de Woody Allen), não a regra. Idem no teatro.<br />
Ainda procurando determinar onde reside o princípio criador da<br />
obra: não será o caso de dizer que na obra de cultura a presença de<br />
elementos provenientes do que se pode chamar ainda agora de<br />
superego seja mais forte ou mais numerosa que a daqueles resultantes<br />
do ego; mas certamente a presença do superego e do ego é aqui mais<br />
incisiva que a do id, esfera das pulsões, motivações inconscientes. Na<br />
obra de arte, inversamente, o ego e o id sobrepõem-se ao superego ou<br />
têm condições de serem tão determinantes quanto o superego. Em<br />
arte, no século 20, o superego se manifestará mais na escolha da forma,<br />
do meio, que no conteúdo: assim, a pintura se submete ao superego<br />
quando ainda aceita propor-se em telas esticadas sobre um chassi de<br />
madeira, tal como consagrado: o superego do gênero, o gênero como<br />
superego.<br />
122 A <strong>CULTURA</strong> E <strong>SEU</strong> <strong>CONTRÁRIO</strong>