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ainda menor medida, nos demais também), o outro recurso contra a<br />
mesmice e a inconsciência (na verdade, o primeiro recurso numa lista<br />
hierarquicamente organizada) é a arte — e à arte se retornará mais<br />
adiante.<br />
O que importa, então, como motivador e objeto dos estudos de<br />
fato culturais e como motivador e objeto das políticas culturais, são,<br />
para retomar a expressão de Pierre Bourdieu, as obras culturais, as obras<br />
de cultura, e não o habitus, o que é outro modo de afirmar o caráter não<br />
inclusivo da cultura: nem tudo é cultura, tudo não é cultura; do todo<br />
constituído por aquilo que a antropologia costuma apresentar como<br />
próprio da cultura, o habitus, neste enfoque, não interessa<br />
prioritariamente; quando se retira do conjunto de atos, atitudes,<br />
comportamentos, ideias, crenças, práticas e representações, aquilo que<br />
configura o habitus, o que resta é a cultura. 9 Claramente, a presença do<br />
habitus é determinante para que a cultura se mostre como aquilo que<br />
pode ser: uma ampliação da esfera de presença do ser. Se a esfera de<br />
presença do ser não estiver delimitada, não tem como ser ampliada.<br />
Mas, como não é certo que cultura e habitus entrem numa síntese<br />
dialeticamente operativa em que um se anula no outro a caminho de<br />
um terceiro diferente de ambos, como supunha uma teoria da cultura<br />
de extração oitocentista, e como cultura e habitus tendem a existir um<br />
ao lado da outra com graus variados de interferência recíproca, a ênfase<br />
será para as obras de cultura, não para o habitus. De resto, o habitus de<br />
Bourdieu não é, aliás, como na concepção de Hobsbawn para o costume,<br />
de todo invariante 10 . O habitus não se apresenta sempre como um<br />
sistema rígido de disposições que determinaria de modo mecânico as<br />
crenças, atos, práticas dos indivíduos e grupos, disposições que<br />
tampouco assegurariam de modo igualmente mecânico a reprodução<br />
social entendida de maneira direta; condições de momento, sociais e<br />
outras, pessoais e outras, podem influir sobre o habitus. De outro lado,<br />
só as condições de momento, sociais ou outras, pessoais ou outras,<br />
não explicam totalmente o habitus: para fazê-lo será necessário remontar<br />
no tempo, revirar os porões dessa memória coletiva que conforma o<br />
habitus tanto quanto é por ele conformada. De um modo ou de outro,<br />
9 A formação, a construção, a aquisição, provavelmente no melhor sentido da palavra Bildung,<br />
outra palavra para cultura no código alemão.<br />
10 O patrimônio cultural, também designado pela expressão patrimônio histórico, é<br />
nitidamente um habitus. E um habitus que, mais que os outros, se pretende, este sim,<br />
imutável. Tanto assim que deve ser não apenas preservado como restaurado... O<br />
patrimônio é, ele também, objeto da política cultural. Sua preservação como elemento<br />
contrastante à cultura (sua função é a de mostrar à cultura para que lado deve ampliarse<br />
a esfera de presença dos seres), e nada mais do que isso, é algo que deveria ficar bem<br />
claro. Isto, no entanto, ainda é outro anátema cultural...<br />
32 A <strong>CULTURA</strong> E <strong>SEU</strong> <strong>CONTRÁRIO</strong>