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vezes obscurece a coisa ela mesma. Frequentemente a obra agrega a<br />
seu conjunto o discurso que sobre ela se faz, de tal modo que entender<br />
o discurso sobre ela é considerado em grande parte como operação<br />
necessária ao entendimento da obra em si (o inverso não é verdadeiro).<br />
O discurso da obra de cultura se faz por construção, por agregação do<br />
que é conhecido, do que já existe e é preservado e como tal incorporado<br />
à obra: o carnaval do Rio se torna sempre mais complexo, novas<br />
máquinas se introduzem, a eletrônica terá um papel destacado a<br />
representar nesse carnaval, no futuro: até aqui, porém, o princípio é o<br />
do novo que se agrega ao velho sem turvar a linha do velho. O discurso<br />
da obra de arte em si elabora-se por rompimento com o que existe<br />
(princípio valorativo da arte contemporânea, obviamente nem sempre<br />
seguido) ou, em todo caso, pela destruição criativa, pela desconstrução<br />
do anteriormente existente (arte moderna: primeiras telas abstratas<br />
de Kandinsky, primeiras telas cubistas de Picasso). Piquenique na grama,<br />
de Manet, é uma destruição criativa de outras pinturas análogas do<br />
século XVI: por vezes a destruição criativa se dá pela simples cópia de<br />
uma representação anterior mas com os meios e a visão do momento<br />
em que se processa aquilo que não é mais uma cópia porém uma<br />
transcriação. A transcriação não é desconhecida na cultura (sob o nome<br />
de aculturação), mas o processo de elaboração da obra de cultura é<br />
antes por agregação e eventual (raro) aumento da complexidade do<br />
que por rompimento ou destruição criativa. Para a obra de arte realizarse,<br />
seu criador deve desaprender o modo pelo qual se fazia arte antes.<br />
Na obra de cultura, é fundamental o aprendizado do tal como (fazer tal<br />
como foi feito antes). Correspondentemente, um programa de política<br />
cultural para a obra de cultura é um programa baseado na reprodução:<br />
o programa para a obra de arte será sempre experimental: o que valia<br />
para uma obra de arte anterior não vale necessariamente para esta<br />
que tenho à minha frente.<br />
Num ponto, porém, ambos os lados, cultura e arte, tendem a<br />
encontrar-se: o discurso sobre a obra de cultura e o discurso sobre a obra de<br />
arte tendem a fazer-se do mesmo modo: por construção, por agregação,<br />
por complexificação do existente. O ensaio pós-moderno sobre a obra<br />
de arte (ensaio de rompimento, de destruição criativa, de<br />
desaprendizado, de desconstrução) ainda é em larga medida inexistente,<br />
uma raridade: ver La vérité en peinture, de J. Derrida. (O melhor ensaio<br />
sobre um filme de Godard é outro filme de Godard.) A tendência do<br />
ensaio sobre a arte é transformar, pelo ensaio, a arte em cultura. Talvez,<br />
uma inevitabilidade. E procedendo assim, será inviável dar conta da<br />
arte: o discurso da obra de cultura não pode ser o mesmo daquele<br />
140 A <strong>CULTURA</strong> E <strong>SEU</strong> <strong>CONTRÁRIO</strong>