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A CULTURA E SEU CONTRÁRIO TC def.pmd

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já relativizada, senão contestada. Mas que comunidades ditas<br />

desenvolvidas possam viver sem arte parece inaceitável. Talvez a<br />

situação de uma comunidade de algum modo desenvolvida e sem arte<br />

não se verifique uma vez que agora, no lugar daquilo que um dia pôde<br />

ter sido apenas artesanato, sempre parece existir alguém cujo desejo de<br />

arte torne a arte viável e viável a ponto de dar a impressão de que os<br />

outros, de que todos os outros, não a podem dispensar. Mas, o fato: a arte<br />

é questão de desejo, enquanto a cultura surge como resposta inevitável<br />

a uma necessidade: uma inevitabilidade. Aí está uma palavra que hoje<br />

permanece ocultada, reprimida: desejo. Arte é uma questão de<br />

liberdade — e essa é outra palavra ocultada ou reprimida hoje nas<br />

discussões sobre a cultura: liberdade (e ocultada no discurso sobre a<br />

sociedade, sobre o social, como se diz). De certa forma, é compreensível<br />

que seja assim: a cultura não se coloca a questão da liberdade (outro<br />

modo de dizer-se que na cultura não há liberdade ou há bem menos<br />

liberdade do que usualmente se considera). Como se confunde arte<br />

com cultura, e como a discussão da liberdade deixou de fazer parte da<br />

pauta social (por considerar-se resolvida, trágico equívoco 62 ; ou por<br />

não haver mais como resolvê-la, algo não menos trágico) não se<br />

costuma (mais) tratar de liberdade quando se trata de arte. Arte é<br />

liberdade, porém. Posso querer fazer uma obra de cultura: mas o querer<br />

da cultura tem pouco a ver com o desejo de arte: digamos que a vontade<br />

de arte tem de ser maior e mais intensa do que a vontade de cultura<br />

para que a arte aconteça: muito maior e mais intensa. Se cultura é<br />

necessidade, não requer vontade — menos ainda desejo. Posso querer<br />

cultura, mas a cultura sobrevirá de um modo ou outro. Não a arte.<br />

O programa para a cultura necessária, nesse caso, recobre uma<br />

questão em tudo distinta daquela relacionada à arte: se cultura é<br />

necessidade, o programa para o cultural pode, por exemplo<br />

(consequência inscrita na agenda atual da cultura adotada pelos<br />

organismos internacionais), revestir-se com a roupagem dos direitos<br />

humanos: os direitos culturais. Sei que estou diante de uma questão<br />

62 Em Alexandre Kojève (Introduction à la lecture de Hegel, Paris: Gallimard, 1968) figura essa<br />

hipótese deslocada de um “fim da história” em 1806 com a vitória de Napoleão na Batalha<br />

de Jena, que se teria concluído com o triunfo dos valores da Revolução Francesa<br />

(liberdade, igualdade, fraternidade) sobre os ideais do sistema aristocrático, isto é, com<br />

o triunfo da ideia de liberdade. A liberdade, claro, não se confirmou nem então, nem<br />

agora e a alegação de Kojève só pode ser entendida como um símbolo ou, mesmo, uma<br />

alegoria. De modo análogo, a liberdade não se configurou no Brasil com o suposto fim<br />

da ditadura mais recente em 1984, como o demonstra, entre outras coisas, a prática<br />

(pelos representantes de partidos políticos os mais diversos, à direita e à esquerda do<br />

espectro ideológico) da promulgação de medidas provisórias pelo Poder Executivo,<br />

quer dizer, pelo presidente da república, num óbvio curto-circuito do Poder Legislativo.<br />

“<strong>CULTURA</strong> É A REGRA; ARTE, A EXCEÇÃO” 125

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