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consagrada. É agora o momento, neste início século 21, de explicitar a<br />
laicidade cultural do Estado. A religião do Estado leigo moderno foi, e<br />
tem sido, a da cultura nacional e da identidade nacional, expressas<br />
numa fórmula que se pretende neutra, a identidade cultural — e da<br />
cultura nacional por excelência que seria a cultura popular <strong>def</strong>inida<br />
como essa cultura existiu antes na era pré-televisão. Essa religião cultural<br />
do Estado não tem mais razão de ser. No mínimo porque, nas palavras<br />
de Jorge Luis Borges, o nacionalismo é a menos perspicaz das paixões.<br />
Também diante dessa realidade deve afirmar-se o programa<br />
individualista e libertário a que me referi e que apenas a sociedade civil<br />
tem condições de levar adiante. Como reconhece Gustavo Carámbula,<br />
num texto ainda inédito 48 , “o Estado não tem legitimidade” (nem<br />
filosófica, nem legal, diria eu ali onde Gonzalo diz “ni teórica, ni en la<br />
norma”) para determinar ou delimitar as formas de expressão cultural<br />
e artística das pessoas, nem para pretender incidir nos conteúdos das<br />
obras. Isso pertence ao campo dos direitos essenciais das pessoas e<br />
nesse âmbito o Estado tem a obrigação de não fazer”. Por isso, continua<br />
Gonzalo, a prioridade é retirar o “estatismo” das políticas de estado. Em<br />
suas palavras, entre a obrigação de zelar pelo desenvolvimento cultural e<br />
qualquer forma de imposição do “valor oficial” da cultura há uma distância<br />
antagônica e irreversível. O reconhecimento da legitimidade de ação da<br />
sociedade civil neste assunto e da necessidade de criar-lhe as condições<br />
para que exerça seu papel — abrindo-lhe espaços legais e orçamentários<br />
— não atende a todos os desejos envolvidos e não dirime todos os<br />
conflitos. Mas é o único modo visível de tirar o estatismo das políticas<br />
culturais antes de se chegar ao ponto que aparentemente hoje ainda<br />
não há como aceitar: a total ausência do Estado nos assuntos da cultura.<br />
Novamente, essa abertura para a sociedade civil não elimina os conflitos.<br />
O fato é que o conflito é inerente à cultura e em qualquer hipótese a<br />
situação resultante da ejeção do estatismo das políticas culturais é um<br />
decidido passo adiante na direção do que já vem sugerido na Agenda<br />
21 para a Cultura em seu artigo 11 da seção “Princípios”, que reafirma a<br />
necessidade de buscar-se um ponto de equilíbrio entre o interesse<br />
público e o privado, de modo a evitar tanto os excessos do mercado<br />
como os da institucionalização da cultura — privilegiando a iniciativa<br />
autônoma dos cidadãos, individualmente ou reunidos em organizações.<br />
E há ainda um motivo para afirmar a precedência da sociedade<br />
civil diante do Estado: o Estado não tem a ver e não pode ter a ver com<br />
48 “Três inquietudes”, apresentado no seminário “Cultura y ciudad sostenible”, realizado em<br />
Valparaiso, Chile, novembro de 2003, a ser publicado proximamente em São Paulo pela<br />
Arte sem Fronteiras.<br />
UMA <strong>CULTURA</strong> PARA O SÉCULO 83<br />
A OBRIGAÇÃO<br />
DE NÃO-FAZER<br />
<strong>CULTURA</strong>L