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PRIMEIRA FIGURA:<br />
A <strong>CULTURA</strong><br />
COMO REFÚGIO<br />
essas palavras é por saber que correrei o risco de desagradar o leitor,<br />
recusando-lhe um pouco a experiência dessas três coisas, sobretudo (e<br />
talvez) a ilusão, em todo caso aquela que se pode ter numa situação de<br />
debate intelectual e que costumeiramente vem na forma de um discurso<br />
positivo em relação ao uso da cultura no trato com a violência (nem direi<br />
“no combate à violência”). Sei como os discursos positivos, que falam da<br />
profusão do possível sem mencionar a limitação do real, entusiasmam e<br />
reconfortam, dando-nos uma sensação agradável que dura, por vezes,<br />
uma tarde inteira... Sei como esse discurso é até mesmo necessário em<br />
certas circunstâncias, e sei que aqueles que não o praticam são vistos<br />
como conservadores ou irrelevantes. Correrei o risco.<br />
Das representações da cultura em relação à violência reterei aqui,<br />
para discussão, cinco: três figuras a esta altura clássicas, uma quarta<br />
acaso menos difundida embora disponível há algum tempo e uma<br />
quinta (com uma variante) que levantarei ao final, de modo tentativo.<br />
Não iniciarei com a proposta de Aristóteles sobre as relações entre<br />
cultura e sublimação não apenas por ser amplamente conhecida como<br />
porque ela está hoje mais do que posta em xeque: a experiência estética<br />
da violência representada tanto purga a paixão da violência quanto lhe<br />
abre as portas, é uma evidência que não se consegue mais contestar.<br />
A primeira figura desta série é, então, a da cultura como a cereja do<br />
bolo, configurada na imagem do recurso à cultura como polimento<br />
adicional do indivíduo, um verniz suplementar, e cuja imagem<br />
eloquente localizo na prática das famílias burguesas ainda nas primeiras<br />
décadas deste século, no Brasil como, um pouco, por toda parte. Assim<br />
como era um hábito cultural difundido entre as famílias cristãs fornecer<br />
um filho à Igreja, como sacerdote, a família burguesa típica, cristã ou<br />
leiga, até meados do século 20 devia contar entre seus membros com<br />
alguém capaz de tocar um piano e entoar um lied depois do jantar —<br />
geralmente a mãe ou um dos filhos, quase sempre uma das filhas — a<br />
título de divertissement íntimo ou modo de edificação do espírito no<br />
recesso do lar, longe da barbárie do mundo e em seguida ao banquete<br />
da carne. De passagem, nada contra os banquetes da carne, embora<br />
possa ter algo contra as edificações do espírito... Todos estão<br />
familiarizados com essa figura da cultura diante da violência, por certo.<br />
De fato, ainda é assim que veem a cultura a maioria dos políticos, à<br />
esquerda e à direita, e uma boa parcela dos que podem promover a<br />
cultura: como um assunto privado, sinal de distinção e reconforto, que<br />
se oferece quem pode e quer (e para o político de esquerda,<br />
habitualmente assim deve ser tanto mais se essa cultura for sobretudo<br />
a dita “erudita”). Imagem que se complementa com a ideia geral de que<br />
88 A <strong>CULTURA</strong> E <strong>SEU</strong> <strong>CONTRÁRIO</strong>