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modos de vida determinados e são como a materialização, a<br />
corporificação da memória coletiva reproduzindo nos descendentes<br />
aquilo que foi adquirido pelos antepassados. O habitus, na expressão de<br />
Bourdieu, é aquilo que permite ao indivíduo e ao grupo “perseverar em<br />
seu ser” — ainda que disso o indivíduo e o grupo não tenham consciência.<br />
Permite-lhes ainda, o habitus, orientar-se no espaço social no qual estão<br />
presentes (evito aqui expressões “espaço social ao qual pertencem” ou<br />
“espaço social que os inclui”, por motivos óbvios) e gerar estratégias<br />
antecipadoras de ação individual e coletiva, elas mesmas orientadas por<br />
esquemas inconscientes (e o papel do imaginário e da antropologia do<br />
imaginário, aos quais Bourdieu no entanto permaneceu relativamente<br />
impermeável, jogam papel destacado aqui) que resultam da educação e<br />
da socialização disponibilizadas. É esse habitus, ainda, o responsável pela<br />
“naturalização” de traços característicos desse indivíduo ou grupo, quer<br />
dizer, por apresentar como próprios e, não raro, inelutáveis (porque naturais,<br />
tradicionais), um conjunto de atitudes, comportamentos, ideias, reações,<br />
expressões etc. É ainda o habitus que explica a homogeneização do gosto<br />
— o gosto, esse tema central na cultura e na política cultural no entanto<br />
delas ainda marginalizado — e torna compreensíveis e, mais que isso<br />
(importantíssimo para “o mercado cultural” mas, coisa que se diz menos,<br />
também para a ideologia e a manipulação ideológica), previsíveis as<br />
preferências e as práticas de cada uma das pessoas componentes desse<br />
grupo e do grupo ele próprio.<br />
Por esse ângulo, o habitus surge primeiro como aparentemente<br />
inelutável e, depois, como necessário ou, em todo caso, valioso. É ele<br />
que ancora o indivíduo e o grupo a alguma coisa. O problema, antes de<br />
mais nada, tal como surge nos estudos ideologizados de cultura e em<br />
certas propostas de política cultural, é a resultante valorização dessa alguma<br />
coisa quando o dado a privilegiar é o elo entre o indivíduo e o grupo e essa<br />
coisa, a natureza desse elo, sua etiologia, o motivo pelo qual ele existe e<br />
funciona. A devida apreciação desses aspectos eventualmente revelaria a<br />
dispensabilidade dessa alguma coisa, passível de ser substituída por outra<br />
coisa, talvez até inteiramente diferente da anterior mas que cumpriria a<br />
mesma função (a proposição de Malinowski ainda mantém toda sua carga<br />
de estimulação intelectual); nessa linha, alguma coisa considerada<br />
tradicional, histórica, antiga e como tal depositária de um valor particular<br />
poderia na verdade ser substituída por outra de natureza distinta (de<br />
curta vida, nova, admitidamente inventada) mas que asseguraria a mesma<br />
funcionalidade no quadro de necessidades ou desejos do indivíduo ou<br />
grupo. E é isso que muita política cultural deixa de lado em suas<br />
considerações, por ignorância ou distorção ideológica.<br />
28 A <strong>CULTURA</strong> E <strong>SEU</strong> <strong>CONTRÁRIO</strong>