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comunidade, de comunicação, reconfortante, baseado inteiramente<br />
em hábitos da comunidade e em hábitos arraigados nessa mesma<br />
linguagem cinematográfica, promotor de uma identidade afirmativa e<br />
reiterativa etc.) quando comparado com este outro que é mais visível e<br />
propriamente dito “obra de arte” (foco divergente de significados,<br />
impermeável à comunidade como um todo e absorvível apenas por<br />
parte dela, obra de expressão mais que de comunicação uma vez que<br />
desprovida de mensagem unívoca, intranquilizadora porque me<br />
questiona em minhas crenças e porque retira o chão sob meus pés<br />
contestando minhas certezas estéticas e outras, inovadora ao repelir<br />
hábitos e práticas reconhecíveis no cinema e na comunidade, corruptora<br />
da identidade cinematográfica e de minha própria identidade, ela<br />
mesma, além de talvez amoral...) Em suma, os polos ao redor dos quais<br />
se elabora este quadro são polos-limite, extremidades radicais da<br />
significação; os casos concretos podem situar-se em algum lugar entre<br />
essas duas extremidades: alguma arte pode ser também comunicativa<br />
em alguma medida (menos ou mais que outra), algum modo cultural<br />
pode ser menos ou mais expressivo (que outro, que um modo da arte).<br />
Algum modo da arte pode ser utilitário (menos ou mais utilitário que<br />
outro); um modo cultural talvez nunca será gratuito. Algum modo<br />
cultural pode ser menos duradouro que outro, quase tão efêmero como<br />
um modo da arte (ou assim pode parecer quando de fato é apenas<br />
uma pequena ou aparente variação de um modo mais longo).<br />
Este quadro, então, se desenvolve ao redor da questão da cultura e<br />
da arte buscando delimitar os termos do contrato que se estabelece<br />
entre cultura e arte, contrato quase sempre avesso ao rompimento e<br />
que no entanto mesmo assim é ocasionalmente rompido — e aí está o<br />
privilégio da arte: a arte tem o privilégio de romper seu contrato com a<br />
cultura, que não pode fazer o mesmo (e a arte tem o privilégio de<br />
romper seu contrato com a própria arte e com a sociedade, e nesse<br />
segundo caso a via é de mão dupla uma vez que a sociedade pode<br />
romper seu contrato com a arte pois a arte não é uma necessidade).<br />
Como outras vezes, também o quadro aqui desdobrado não diz sempre<br />
qual modo de cultura específico está sendo usado como objeto de<br />
análise (se é uma obra, um comportamento, uma prática, uma crença<br />
etc.): supõe-se ou se espera que o acúmulo das descrições apresentadas<br />
dará conta dessa questão. Um ponto pelo menos fique claro: a<br />
concepção antropológica de que tudo é cultura é irrelevante para este<br />
quadro e para a prática da política cultural. Dito de forma diversa: nem<br />
tudo é cultura, nem todos os modos de cultura têm o mesmo valor,<br />
nem dentro de uma mesma comunidade nem por comparação com os<br />
150 A <strong>CULTURA</strong> E <strong>SEU</strong> <strong>CONTRÁRIO</strong>