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V<strong>as</strong>culhei a memória, m<strong>as</strong> não encontrei uma única oc<strong>as</strong>ião em que os modos<br />
do meu pai à mesa tivessem me incomodado, <strong>as</strong>sim como não me lembrei de um<br />
só momento em que minha mãe houvesse abordado a questão diretamente,<br />
embora jantássemos juntos tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> noites, como uma verdadeira família. Foi<br />
nesse dia que reparei que meus pais tinham uma vida secreta, independente de<br />
mim — que eles brigavam quando eu não estava olhando ou talvez discutissem<br />
aos sussurros no quarto e depois, na minha frente, fingissem que estava tudo<br />
bem. Entendi que aquele papo de m<strong>as</strong>tigação seria um ponto sem volta para<br />
mim. Talvez vocês me achem burra por demorar tanto tempo para entender que<br />
meus pais não se amavam mais, m<strong>as</strong> sempre acreditei que eles fossem exatamente<br />
quem aparentavam ser. Por que eu pensaria de outra forma?<br />
A partir daquele dia, comecei a reparar outr<strong>as</strong> cois<strong>as</strong> em minha mãe. Por<br />
exemplo, ela podia estar no pior dos humores, reclamando de tudo na vida pelos<br />
corredores do supermercado, m<strong>as</strong> era só esbarrar em uma de su<strong>as</strong> clientes na<br />
seção de cereais e seu comportamento mudava por completo. “Fulaaaaana!”, ela<br />
cantarolava, como se do nada tivesse sido transportada para um musical. Um<br />
sorriso brotava em seu rosto, os olhos se abriam tanto que pareciam prestes a<br />
saltar d<strong>as</strong> órbit<strong>as</strong>. Minha mãe sempre começava perguntando escandalosamente<br />
sobre a família da mulher, depois relatava, num sussurro conspiratório, alguma<br />
tragédia pessoal de um conhecido (um diagnóstico médico negativo que alguém<br />
recebera, algum marido alcoólatra, algum vizinho que a mulher odiava), para<br />
enfim introduzir o <strong>as</strong>sunto de algum projeto de reforma que “precisa ser feito<br />
imediatamente se você quiser manter o valor de revenda do seu imóvel, porque,<br />
afinal, reformar é o melhor investimento a fazer em seu maior investimento”. Minha<br />
mãe sempre falava que a c<strong>as</strong>a era a posse mais importante de uma família, m<strong>as</strong><br />
que mesmo <strong>as</strong>sim pouco se investia em renovações estétic<strong>as</strong>. “Ridículo!”, gritava<br />
ela quando estávamos a sós. “Uma estupidez!”<br />
Eu me lembro bem de uma vez em que isso aconteceu na praça de<br />
alimentação do shopping. Encontramos a sra. Shaeffer com a filha, Rebecca, que<br />
era da minha turma, m<strong>as</strong> que ninguém conhecia muito bem, porque ela sofria de<br />
um tipo severo de <strong>as</strong>ma e vivia faltando. Se aparecia na escola sete vezes por ano,<br />
era muito. Minha mãe fez um milhão de pergunt<strong>as</strong> a Rebecca sobre sua saúde,<br />
insistindo tanto no <strong>as</strong>sunto que comecei a me sentir mal, porque a garota<br />
obviamente não queria falar sobre aquilo. Lembro que Rebecca <strong>as</strong>pirava o<br />
inalador a cada resposta, embora não parecesse lhe faltar ar. O estranho era que a<br />
sra. Shaeffer acompanhava toda a conversa com um olhar de amor absoluto por