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— A questão, Jovem Nanette, é não se prender a um tipo como se fossem<br />
algem<strong>as</strong>.<br />
Mesmo mais tarde, quando estava no carro a caminho da minha primeira<br />
visita “não oficial” a uma universidade, eu não conseguia deixar de me sentir<br />
como se estivesse de fato algemada, colocada à venda no mercado. Aquel<strong>as</strong><br />
universidades queriam meus pés, meus pulmões, minh<strong>as</strong> cox<strong>as</strong>, minh<strong>as</strong> canel<strong>as</strong>,<br />
minha barriga e minha testa, e queriam que eu su<strong>as</strong>se por el<strong>as</strong>, que corresse atrás<br />
de uma bola num gramado e fizesse de tudo para marcar gols. Parecia uma coisa<br />
meio selvagem, descrevendo daquele jeito puramente objetivo. Havia um leilão<br />
em andamento, e era meu corpo de artilheira que estava à venda.<br />
Meus pais falavam sem parar sobre meu futuro: todos os cursos que eu<br />
poderia escolher, os lugares que eu conheceria se jog<strong>as</strong>se para esse ou aquele<br />
time, e que alguns participavam de campeonatos internacionais na Europa e na<br />
América do Sul, e todos os benefícios vitalícios de pertencer a determinad<strong>as</strong><br />
<strong>as</strong>sociações daquel<strong>as</strong> instituições.<br />
Eu insistia em me censurar por pensar em tant<strong>as</strong> garot<strong>as</strong> da minha idade pelo<br />
mundo que não tinham o que comer nem acesso a água tratada e ali estava eu,<br />
me sentindo prisioneira em um carro de luxo, a caminho d<strong>as</strong> melhores<br />
universidades do país interessad<strong>as</strong> em me proporcionar formação acadêmica sem<br />
custo.<br />
Me comparando a um escravo.<br />
Sério?<br />
Eu não parava de me censurar por ser ingrata, m<strong>as</strong> mesmo <strong>as</strong>sim não<br />
conseguia ignorar a sensação de que aquilo tudo era uma espécie de armadilha.<br />
Eu sabia que era privilegiada, m<strong>as</strong> de que valia ter tantos privilégios se não<br />
podia fazer minh<strong>as</strong> própri<strong>as</strong> escolh<strong>as</strong>? Era um privilégio p<strong>as</strong>sar a vida inteira<br />
nutrindo infelicidade por dentro?<br />
Durante <strong>as</strong> visit<strong>as</strong>, quando conversávamos com os responsáveis pela seleção,<br />
técnicos e jogadores, eu ficava quieta a maior parte do tempo, como uma<br />
observadora, enquanto meus pais tratavam da minha vida como se eu não<br />
estivesse ali. Às vezes eles até diziam um “Não é mesmo, Nanette?”, e dava para<br />
ver que eles queriam que eu particip<strong>as</strong>se mais e fingisse um grande interesse por<br />
ficar de conversa com um monte de estranhos, m<strong>as</strong> eu não achava a paisagem tão<br />
bonita quanto eles achavam, tampouco apreciava a “história viva” impressa na<br />
arquitetura d<strong>as</strong> construções. Também não achava estimulante a grade de<br />
disciplin<strong>as</strong>, a abordagem dos treinadores não me impressionava, minh<strong>as</strong>