Anais do I- EEL - Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
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REVELL – Revista <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s Literários da UEMS, Ano 01, número 1. ISSN: 2179-4456<br />
por assim dizer, jogar fora a escada após ter subi<strong>do</strong> por ela) <strong>de</strong>ve sobrepujar essas<br />
proposições, e então verá o mun<strong>do</strong> corretamente. (WITTGENSTEIN, 2008, p.281)<br />
A “superação” <strong>do</strong> Tratactus é uma condição necessária para compreen<strong>de</strong>r a posição<br />
<strong>de</strong>fendida pelo filósofo. E, por conseguinte, se o senti<strong>do</strong> existencial da criação literária <strong>de</strong><br />
Clarice, segun<strong>do</strong> Nunes (1976, p.139) resume-se na máxima: ‘É preciso falar daquilo que nos<br />
obriga ao silêncio’, po<strong>de</strong>mos concluir que a função terapêutica presente em Wittgenstein, tanto<br />
no Tratactus quanto nas Investigações Filosóficas, <strong>de</strong> nos convidar a dissolver problemas<br />
cotidianos funda<strong>do</strong>s no mau uso da linguagem, para que esta seja um meio efetivo <strong>de</strong><br />
comunicação, que nos permita falar inclusive sobre aquilo que nos obriga ao silêncio, também<br />
se faz presente na obra <strong>de</strong> Lispector, especialmente em, A Paixão Segun<strong>do</strong> G.H.. Ilustra o que<br />
estamos dizen<strong>do</strong> a passagem:<br />
Mas – como era antes o meu silêncio, é o que eu não sei e nunca soube. Às vezes,<br />
olhan<strong>do</strong> um instantâneo tira<strong>do</strong> na praia ou numa festa, percebia com leve apreensão<br />
irônica o que aquele rosto sorri<strong>de</strong>nte e escureci<strong>do</strong> me revelava: um silêncio. Um<br />
silêncio e um <strong>de</strong>stino que me escapavam, [...] Nunca então havia eu <strong>de</strong> pensar que iria<br />
<strong>de</strong> encontro com este silêncio. “Ao estilhaçamento <strong>do</strong> silêncio.” (LISPECTOR, 1988,<br />
p.18)<br />
A visão da personagem-narra<strong>do</strong>ra GH é inseparável <strong>do</strong> ato <strong>de</strong> contá-la, e a consciência da<br />
linguagem enquanto o que não po<strong>de</strong> ser totalmente verbaliza<strong>do</strong> está presente na ficção. A<br />
personagem GH, ao afirmar, que viver não é relatável enten<strong>de</strong> que o momento da vivência -<br />
instantâneo - foge à palavra que o expressa. G.H sabe que o ato <strong>de</strong> narrar não compreen<strong>de</strong>, não<br />
engloba o fato vivi<strong>do</strong>. A passagem a seguir <strong>do</strong> romance, corrobora o que estamos discutin<strong>do</strong>:<br />
Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível.<br />
Terei <strong>de</strong> criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é<br />
imaginação, é correr o gran<strong>de</strong> risco <strong>de</strong> se ter a realida<strong>de</strong>. Enten<strong>de</strong>r é uma criação,<br />
meu único mo<strong>do</strong>. Precisarei com esforço traduzir sinais <strong>de</strong> telégrafo- traduzir o<br />
<strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong> para uma língua que <strong>de</strong>sconheço e sem sequer enten<strong>de</strong>r para que<br />
valem os sinais. Falarei nessa linguagem sonâmbula que se eu não estivesse não<br />
seria linguagem.<br />
Até criar a verda<strong>de</strong> <strong>do</strong> que me aconteceu. Ah, será mais um grafismo <strong>do</strong> que<br />
uma escrita pois tenho mais uma reprodução <strong>do</strong> que uma expressão. (LISPECTOR,<br />
1988, p. 15)<br />
A personagem G.H. propõe criar sobre a realida<strong>de</strong>, criar a “verda<strong>de</strong>” <strong>do</strong> que lhe<br />
aconteceu, como uma reprodução <strong>do</strong>s sentimentos vivi<strong>do</strong>s, porque sabe que qualquer tentativa<br />
<strong>de</strong> relatar - através da linguagem - um momento vivi<strong>do</strong> ten<strong>de</strong>rá ao fracasso, por ser aquilo que<br />
a expressão verbal não consegue <strong>de</strong>screver em sua totalida<strong>de</strong>. E a autora reconhece que o criar<br />
literário, a imaginação no momento da escrita, é o que se faz sem pretensão <strong>de</strong> ter um valor <strong>de</strong><br />
verda<strong>de</strong> tal ou qual, como propõe Wittgenstein.<br />
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