memórias de parteiras - Repositório Institucional da UFSC
memórias de parteiras - Repositório Institucional da UFSC
memórias de parteiras - Repositório Institucional da UFSC
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
151<br />
esquemas <strong>de</strong> percepção, <strong>de</strong> avaliação e <strong>de</strong> ação que são constitutivos dos habitus e<br />
que fun<strong>da</strong>mentam, aquém <strong>da</strong>s <strong>de</strong>cisões <strong>da</strong> consciência e dos controles <strong>da</strong> vonta<strong>de</strong>,<br />
uma relação <strong>de</strong> conhecimento profun<strong>da</strong>mente obscura a ela mesma. Assim, a lógica<br />
paradoxal <strong>da</strong> dominação masculina e <strong>da</strong> submissão feminina, que se po<strong>de</strong> dizer ser,<br />
ao mesmo tempo e sem contradição expontânea e extorqui<strong>da</strong>, só po<strong>de</strong> ser<br />
compreendi<strong>da</strong> se nos mantivermos atentos aos efeitos duradouros que a or<strong>de</strong>m social<br />
exerce sobre as mulheres (e os homens), ou seja, às disposições espontaneamente<br />
harmoniza<strong>da</strong>s com esta or<strong>de</strong>m que as impõe. (BOURDIEU, 1999, p. 49-50)<br />
O que eu proponho como reflexão para esse estudo não é <strong>de</strong> que a dominação<br />
masculina seja algo rígido, vertical, rígido, em que as mulheres nas relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r estão<br />
sempre submeti<strong>da</strong>s ao homem, numa perspectiva <strong>de</strong> vitimização <strong>da</strong> mulher que eu discordo.<br />
Essas relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r se dão a partir <strong>de</strong> outras variáveis como classe e etnia, e em várias<br />
situações nas relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r a mulher não é vítima. O que eu quero argumentar é que,<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do status que homens ou mulheres ocupem na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> há uma visão <strong>de</strong><br />
mundo falocêntrica que direciona as pessoas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as <strong>de</strong>cisões políticas às escolhas<br />
individuais.<br />
As narrativas <strong>da</strong>s <strong>parteiras</strong> <strong>de</strong>sse estudo em vários momentos apontam nessa direção,<br />
nessa associação do cui<strong>da</strong>do ao feminino, <strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> presença <strong>da</strong> mulher na cena do<br />
parto porque cui<strong>da</strong>, e o homem só é admitido nesse espaço pela competência técnico-<br />
científica, mas <strong>de</strong> certa maneira é ele quem <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>, quem dá a palavra final, quem po<strong>de</strong> salvar<br />
a mulher dos perigos do parto. No estudo <strong>de</strong> Bessa e Ferreira (1999) sobre o trabalho <strong>da</strong>s<br />
<strong>parteiras</strong> rurais do Acre em que já existem pelo menos dois parteiros do sexo masculino, elas<br />
relatam que estes parteiros só fazem a parte técnica do parto, porque as <strong>de</strong>mais atribuições <strong>da</strong>s<br />
<strong>parteiras</strong> não são para homens fazerem (<strong>da</strong>r chás, olhar criança, massagens, aju<strong>da</strong>r no serviço<br />
<strong>da</strong> casa), enfim cui<strong>da</strong>m. Acho muito proce<strong>de</strong>nte o questionamento <strong>de</strong> Waldow:<br />
O questionamento em relação à enfermagem <strong>de</strong>correria <strong>da</strong> <strong>de</strong>svalorização, por ser<br />
uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> exerci<strong>da</strong> predominantemente por mulheres, ou <strong>da</strong> associação com o<br />
cui<strong>da</strong>r que seria <strong>de</strong>svalorizado e assim assumido pelas mulheres, uma vez que o<br />
componente masculino lhes permitiu o acesso? (WALDOW, 1999, p.65)<br />
Assim o cui<strong>da</strong>do torna-se na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> uma faca <strong>de</strong> dois gumes para a enfermagem: ele é<br />
reivindicado como objeto primeiro <strong>da</strong> profissão, é associado ao feminino, ao mesmo tempo<br />
em que é repudiado e relegado aos subalternos. Dessa forma as enfermeiras. <strong>de</strong>tentoras do<br />
conhecimento científico e qualificado <strong>de</strong>slocam-se e i<strong>de</strong>ntificam-se com as práticas do tratar e<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do gênero tomam uma “performance masculina”, elas próprias <strong>de</strong>squalificando<br />
o que é relacionado ao feminino. Isso aplica-se inclusive à resistência que algumas<br />
enfermeiras têm ao feminismo e a incorporação dos estudos <strong>de</strong> gênero às teorias <strong>de</strong><br />
enfermagem. Peggy Chinn foi uma <strong>da</strong>s primeiras enfermeiras norte americanas a abor<strong>da</strong>r o