<strong>Direitos</strong> Hu m a n o s n o Br a s i l <strong>2010</strong>ficação e Delimitação (RTID), incluindo estudo dos aspectos antropológicos para a identificaçãodo território a ser titulado.A indignação das lideranças quilombolas contra a IN nº 20 assentou-se, entre outrascoisas, <strong>no</strong> fato de que dita exigência não fazia parte do corpo do Decreto 4.887/2003. Alémdisso, alertavam que, como a quantidade de procedimentos instaurados era infinitamentesuperior à de antropólogos contratados pelo Incra, inúmeros procedimentos ficariam, comode fato ficaram, paralisados, na espera pela elaboração do exigido relatório antropológico.Pese a <strong>no</strong>va IN nº 20 trazer como um de seus fundamentos a Convenção 169 da OIT,ainda assim eram visíveis os entraves por parte do Incra, que parecia ig<strong>no</strong>rar a autoidentificaçãodos remanescentes do território quilombola subscritos pelas comunidades étnicasinteressadas, conforme lhes garante a Convenção 169 da OIT.Todo esse imbróglio <strong>no</strong>rmativo permitiu que, <strong>no</strong> período entre 2003 e 2007, o gover<strong>no</strong>Lula – já reeleito – conferisse somente a titulação de seis territórios quilombolas.Na base populacional dos quilombos, as mudanças <strong>no</strong>rmativas e a pífia política detitulação, além de propiciarem a intensificação dos conflitos, ampliavam os espaços dosparlamentares da banca ruralista, possibilitando-os, <strong>no</strong>vamente, elaborar mais medidascontra os dispositivos legais garantidores dos direitos quilombolas. Provam isto o Projetode Decreto Legislativo (PDL) nº 44/2007 e o Projeto de Lei (PL) nº 3.654/08, ambos apresentadosà Câmara Federal pelo deputado Valdir Colatto (PMDB/SC). Hoje arquivadosgraças a articulada mobilização da sociedade civil, o primeiro visava fulminar o Decreto4.887/2003, e o segundo, dar <strong>no</strong>va regulamentação ao artigo 68 do ADCT.Considere-se, ainda, que a timidez governamental com a política de titulação dosterritórios possibilitou que os ataques ao Decreto 4.887/2003 fossem assumidos tambémpela grande mídia nacional, que, de mãos dadas com a bancada ruralista, encampou verdadeiracampanha antiquilombola, em defesa dos interesses do agronegócio, do latifúndioe das multinacionais.Por parte da mídia, foram veiculadas matérias escritas e televisivas contra o gover<strong>no</strong>federal, acusando-o de reconhecer comunidades como quilombolas sem critérios e extrapolaro direito previsto <strong>no</strong> artigo 68 do ADCT.Registros confirmam 68 matérias em telejornais, revistas e jornais de grande circulação5 , tendo à frente a principal rede de televisão brasileira, a Rede Globo, infatigável combatentedo critério da autoidentidade quilombola. A campanha ofensiva buscou, particularmente,descaracterizar a <strong>no</strong>ção de identidade quilombola, com acusações de que, emalguns casos, as declarações de autorreconhecimento, recebidas, registradas e publicadaspela Fundação Cultural Palmares foram falsificadas.Foram vítimas da grande imprensa brasileira as seguintes comunidades quilombolas:São Francisco do Paraguaçu (BA); Marambaia e Pedra do Sal (RJ); Santo Antônio doGuaporé (SP); e Invernada dos Negros (SC).5Disponível em: . Acesso em 5/10/<strong>2010</strong>.90<strong>Direitos</strong> huma<strong>no</strong>s.indd 9011/18/10 12:15:37 PM
A t i t u l a ç ã o d o s t e rr i t ó r i o s q u i l o mb o l a s: u m a b reve l e i t u r a d o s o i t o a n o s d e g o v e r n o Lu l aO gover<strong>no</strong> brasileiro, por seu tur<strong>no</strong>, rendendo-se às incisivas pressões dos parlamentarese da campanha midiática, preferiu retroceder <strong>no</strong>s direitos quilombolas, alimentandoainda mais os impasses <strong>no</strong> tocante às titulações. Além disso, a Fundação Cultural Palmaresdecidiu suspender as emissões das certidões de autorreconhecimento das comunidadesde quilombos por todo o <strong>Brasil</strong>, deliberando pela criação de dois grupos de trabalho. Umdeles com a missão de rever os processos de certificação e a tramitação dos procedimentosde regularização fundiária do Incra (Portaria 57, de 6 de julho de 2007); o outro, coma tarefa de apresentar resposta à Sindicância Administrativa originada pelas denúnciasda imprensa, em especial as referentes à certificação da comunidade quilombola de SãoFrancisco do Paraguaçu (Portaria 58, de 10 de julho de 2007), acenando para a sociedadeque a campanha antiquilombola atingira seus propósitos.Assediada pelas tentativas de fustigação do Decreto 4.887/2003, a Presidência daRepública, por meio da Advocacia Geral da União (AGU), mobilizou-se para alterar a INnº 20, sob o pretexto de que estavam em referida instrução <strong>no</strong>rmativa as falhas denunciadase, por isso, a seu ver, alterando-a, preservaria o decreto presidencial. Para a alteraçãoda IN nº 20, os quilombolas já apropriados de seus direitos exigiram ser consultados emrespeito aos ditames da Convenção 169 da OIT.Após uma primeira camuflada tentativa, uma segunda e conturbada consulta foirealizada com a presença de não mais de trezentos quilombolas. Ao final da suposta consulta,os pontos divergentes que os quilombolas destacaram foram debatidos e a<strong>no</strong>tados,porém, desacatados pelos representantes da AGU, deixando aos quilombolas a conclusãode que foram convocados, apenas e tão somente, para ouvirem que o gover<strong>no</strong> iria mudara <strong>no</strong>rmativa, sem poderem ter inserção ou influência <strong>no</strong> procedimento.Resultado: a consulta significou retrocesso <strong>no</strong> reconhecimento dos direitos dos quilombolas,e afronta aos artigos 215 e 216 da Constituição Federal, ao artigo 68 do ADCTda Constituição Federal e à Convenção 169 da OIT 6 .Mesmo assim, <strong>no</strong> dia 29 de setembro de 2008, foi publicada <strong>no</strong> órgão oficial a <strong>no</strong>vaInstrução Normativa, de nº 49 7 . Em contraposição ao seu teor, entidades quilombolas lançaramcarta de repúdio denunciando a ineficiência metodológica da consulta, que nãopermitiu que pudessem, em tempo suficiente, formular seus questionamentos: a falta de6Para saber mais sobre a mencionada consulta que origi<strong>no</strong>u a IN nº 49 e seus reflexos, leia Cintia Beatriz Muller, “Aconstrução do consenso e a consulta aos povos quilombolas <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, Convenção 169 da Organização Internacionaldo Trabalho”, em <strong>Direitos</strong> <strong>Huma<strong>no</strong>s</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> 2008: relatório da Rede Social de Justiça e <strong>Direitos</strong> <strong>Huma<strong>no</strong>s</strong>, p. 111-120; Jhonny Martins de Jesus [et all], “Gover<strong>no</strong> federal entrega quilombolas aos leões”, cit., p. 121-124; Ana CarolinaChasin e Daniela Carolina Perutti, “Os retrocessos trazidos pela Instrução Normativa do Incra n.º 49/2008 na garantiados direitos das Comunidades Quilombolas”, em , 2009.7Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão, titulaçãoe registro das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que tratam o Art. 68 do Atodas Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 e o Decreto nº 4.887, de 20 de <strong>no</strong>vembrode 2003.91<strong>Direitos</strong> huma<strong>no</strong>s.indd 9111/18/10 12:15:37 PM