Carl Gustav Jung - A Natureza da Psique.pdf - Agricultura Celeste
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guerra 172 , nossa mentali<strong>da</strong>de se caracteriza pela extrema ingenui<strong>da</strong>de com que se julga os adversários, e<br />
no julgamento que emitimos a seu respeito revelamos involuntariamente nossos próprios defeitos:<br />
simplesmente culpamos nosso adversário de to<strong>da</strong>s as nossas próprias faltas que não temos coragem de<br />
confessar. Enxergamos todos os defeitos nos outros, criticamos sempre o nosso semelhante e queremos<br />
sempre educá-lo e corrigi-lo. Não vejo necessi<strong>da</strong>de de apresentar exemplos para provar minhas<br />
afirmações: os exemplos mais convincentes se encontram nas páginas <strong>da</strong> imprensa diária. Mas não é<br />
preciso dizer que o que acontece em grande escala, pode acontecer também em ponto reduzido com ca<strong>da</strong><br />
um de nós. Nossa mentali<strong>da</strong>de é ain<strong>da</strong> tão primitiva, que somente em algumas funções e em alguns<br />
domínios ela se libertou <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de mística originária com o objeto. O homem primitivo alia um<br />
mínimo de consciência de si mesmo a um máximo de ligação com o objeto, o qual é capaz de exercer<br />
diretamente sobre ele sua compulsão mágica. To<strong>da</strong> magia e to<strong>da</strong> religião primitiva se fun<strong>da</strong>m nestas<br />
ligações mágicas com o objeto, ligações que consistem simplesmente em projeções de conteúdos<br />
inconscientes sobre o objeto. Foi a partir deste estado inicial de identi<strong>da</strong>de que se desenvolveu<br />
gradualmente a autoconsciência que caminha a par com a distinção entre sujeito e objeto. Foi esta<br />
diferenciação que levou o homem a perceber que certas proprie<strong>da</strong>des atribuí<strong>da</strong>s, outrora, ingenuamente,<br />
ao objeto eram, na reali<strong>da</strong>de, conteúdos subjetivos. Embora os homens <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong>de tivessem deixado<br />
de acreditar que eram araras vermelhas ou irmãos do crocodilo, ain<strong>da</strong> se achavam envoltos em fantasias<br />
mágicas. Neste ponto, foi preciso esperar pelo iluminismo do século XVIII para se <strong>da</strong>r um passo decisivo<br />
à frente. Mas ninguém ignora que nos encontramos ain<strong>da</strong> muito distante de uma autoconsciência que<br />
correspon<strong>da</strong> aos nossos conhecimentos atuais. Quando nos deixamos levar pela cólera até ao<br />
arrebatamento, por um motivo qualquer, não pensemos que a causa de nossa fúria esteja situa<strong>da</strong> fora de<br />
nós, no objeto ou na pessoa que nos irritam. Na reali<strong>da</strong>de, atribuímos a essas coisas o poder de nos<br />
colocar no estado de irritação e às vezes mesmo de nos causarem insônia ou indigestão. Por isto<br />
condenamos, despreocupa<strong>da</strong>mente e sem freios, o objeto que nos irrita, ofendendo assim uma parte<br />
inconsciente de nós mesmos, que se encontra projeta<strong>da</strong> no elemento perturbador.<br />
[517] Semelhantes projeções são legiões. Umas são favoráveis, isto é, funcionam como pontes,<br />
facilitando a passagem <strong>da</strong> libido de uma margem para outra. Outras são desfavoráveis, mas, na prática,<br />
não constituem obstáculo, porque as projeções desfavoráveis em geral se localizam fora do círculo <strong>da</strong>s<br />
relações íntimas. O neurótico, to<strong>da</strong>via, é uma exceção a esta regra: consciente ou inconscientemente ele<br />
desenvolve uma relação de tal intensi<strong>da</strong>de com seu meio ambiente mais imediato, que não consegue<br />
impedir que as projeções desfavoráveis se alojem também nos objetos mais próximos e provoquem<br />
conflitos. Isto o obriga — quando ele deseja e procura realmente a cura — a tomar consciência de suas<br />
projeções primitivas, com uma acui<strong>da</strong>de muito mais intensa do que a do indivíduo normal. É ver<strong>da</strong>de que<br />
este último produz também as mesmas projeções, mas estas são mais bem distribuí<strong>da</strong>s: o objeto fica mais<br />
perto <strong>da</strong>s favoráveis e as desfavoráveis a maior distância. Como se sabe, é isto o que acontece com o<br />
primitivo: para ele, estrangeiro é sinônimo de inimigo e de mau. Entre nós, até o final <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Média, os<br />
termos "estrangeiro" e "miséria" se equivaliam. Esta repartição é adequa<strong>da</strong>, sendo esta a razão pela qual o<br />
indivíduo normal não sente necessi<strong>da</strong>de nenhuma de tornar conscientes suas projeções, embora este<br />
estado seja perigosamente ilusório. A psicologia <strong>da</strong> guerra colocou isto fortemente em evidência: tudo o<br />
que a nossa nação faz, é bem feito; tudo o que as outras nações fazem, é mal feito. O centro de to<strong>da</strong>s as<br />
iniqüi<strong>da</strong>des e baixezas se acha sempre a uma distância de vários quilômetros, por trás <strong>da</strong>s linhas inimigas.<br />
Esta psicologia primitiva é também a de ca<strong>da</strong> um de nós em particular. Por isto, qualquer tentativa para<br />
levar estas projeções eternamente inconscientes à consciência provoca forte antipatia. É certo que<br />
gostaríamos de manter melhores relações com nossos iguais, mas naturalmente com a condição de que<br />
correspon<strong>da</strong>m às nossas expectativas, isto é, de que proce<strong>da</strong>m como portadores submissos de nossas<br />
projeções. Entretanto, se estas projeções se tornarem conscientes, elas podem dificultar nossas relações<br />
com os outros, porque deixa de existir a ponte de ilusão pela qual passam nossos impulsos de amor e de<br />
ódio, trazendo-nos alívio; deixa de existir essa ponte mediante a qual fazemos passar, com tanta facili<strong>da</strong>de<br />
e tão tranqüilamente, nossas pretensas virtudes de "reforma" e "reabilitação" dos outros. A conseqüência<br />
destas dificul<strong>da</strong>des é um represamento <strong>da</strong> libido que torna conscientes as projeções desfavoráveis. O<br />
sujeito vê-se então diante <strong>da</strong> tarefa de assumir, por própria conta e risco, to<strong>da</strong>s as baixezas e perversi<strong>da</strong>des<br />
de que não hesitamos em julgar capazes os outros e contra as quais nos sentimos indignados durante uma<br />
vi<strong>da</strong> inteira. O que há de exasperante neste procedimento é, de um lado, a convicção de que, se todos os<br />
172 Primeira guerra mundial.