Carl Gustav Jung - A Natureza da Psique.pdf - Agricultura Celeste
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VIII – CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A NATUREZA DO PSÍQUICO 21<br />
A. A QUESTÃO DO INCONSCIENTE SOB O PONTO DE VISTA HISTÓRICO<br />
[343] Quase não existe um outro domínio <strong>da</strong>s Ciências que nos demonstre mais claramente a<br />
mu<strong>da</strong>nça espiritual <strong>da</strong> Antigüi<strong>da</strong>de clássica para a i<strong>da</strong>de moderna do que a Psicologia. Sua história 22 até o<br />
século XVII consiste basicamente em enumerar as doutrinas referentes à alma, sem que esta jamais<br />
pudesse fazer-se ouvir como objeto <strong>da</strong> investigação. Como <strong>da</strong>do imediato <strong>da</strong> experiência ela parecia tão<br />
completamente conheci<strong>da</strong> de qualquer pensador, que este poderia estar convencido de que não haveria<br />
necessi<strong>da</strong>de de qualquer experiência complementar ou mesmo objetivo. Esta posição é totalmente alheia<br />
ao ponto de vista moderno, porque hoje somos de opinião que, além de qualquer certeza subjetiva,<br />
precisamos ain<strong>da</strong> <strong>da</strong> experiência objetiva para fun<strong>da</strong>mentar uma opinião que preten<strong>da</strong> ser científica.<br />
Apesar de tudo, é difícil, mesmo hoje, sustentar coerentemente o ponto de vista puramente empírico ou<br />
fenomenológico na Psicologia, porque a concepção ingênua primitiva de que a alma, como <strong>da</strong>do imediato<br />
<strong>da</strong> experiência, é o que há de mais conhecido entre tudo o que se possa conhecer, se acha profun<strong>da</strong>mente<br />
enraiza<strong>da</strong> em nossa convicção. Não é somente qualquer leigo que presume emitir um juízo, quando se<br />
apresenta a ocasião, mas até mesmo qualquer psicólogo, e isto não somente com referência ao sujeito,<br />
mas também, o que é mais grave, com referência ao objeto. Sabemos ou acreditamos saber o que se passa<br />
com outro indivíduo e o. que seja bom para ele. Isto se deve menos a um soberano desconhecimento <strong>da</strong>s<br />
diferenças, do que propriamente à tácita suposição de que todos os indivíduos são iguais entre si. A<br />
conseqüência disto é que as pessoas se sentem inclina<strong>da</strong>s, a acreditar na validez universal de opiniões<br />
subjetivas. Menciono esta circunstância só pára mostrar que, apesar do empirismo crescente dos três<br />
últimos séculos, a atitude original ain<strong>da</strong> não desapareceu. Sua persistência nos prova muito bem como é<br />
difícil a transição <strong>da</strong> antiga concepção filosófica para a concepção empírica moderna.<br />
[344] Naturalmente jamais ocorreu aos defensores do antigo ponto de vista que suas doutrinas<br />
na<strong>da</strong> mais eram do que fenômenos psíquicos, pois acreditava-se, ingenuamente, que com a aju<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />
inteligência ou <strong>da</strong> razão o homem podia, por assim dizer, sair de seus condicionamentos psíquicos e<br />
transportar-se para um estado racional e supra-psíquico. Ain<strong>da</strong> se tem o receio de levar a sério a dúvi<strong>da</strong> se<br />
as proposições do espírito são, afinal, sintomas de certas condições psíquicas 23 . Esta pergunta pareceria<br />
evidente por si mesma, mas ela tem conseqüências revolucionárias de tamanho alcance, que facilmente se<br />
compreende por que tanto o passado quanto o presente fizeram o máximo por ignorá-la. Ain<strong>da</strong> hoje<br />
estamos longe de ver, como Nietzsche, a Filosofia e mesmo a Teologia como ancilla psychologiae (serva<br />
<strong>da</strong> psicologia), pois nem mesmo o psicólogo se acha disposto a considerar seus enunciados, pelo menos<br />
em parte, como uma profissão de fé subjetivamente condiciona<strong>da</strong>. Só podemos dizer que os indivíduos<br />
são iguais somente na medi<strong>da</strong> em que eles são amplamente inconscientes, isto é, inconscientes de suas<br />
diferenças reais. Quanto mais uma pessoa é inconsciente, tanto mais ela se conforma aos cânones do<br />
comportamento psíquico. Mas, quanto mais ela toma consciência de sua individuali<strong>da</strong>de, tanto mais<br />
acentua<strong>da</strong> se torna sua diferença em relação a outros indivíduos e tanto menos corresponderá ela à<br />
expectativa comum. Além disso, suas reações se tornam muito menos previsíveis. Isto se deve ao fato de<br />
que a consciência individual é sempre muito mais diferencia<strong>da</strong> e mais ampla. Mas, quanto mais ampla<br />
esta se torna, tanto mais ela perceberá as diferenças e tanto mais se emancipará também <strong>da</strong>s normas<br />
coletivas, pois o grau de liber<strong>da</strong>de empírica será proporcional à extensão <strong>da</strong> consciência.<br />
[345] Na medi<strong>da</strong> em que aumenta a diferenciação individual <strong>da</strong> consciência, diminui a vali<strong>da</strong>de<br />
objetiva de suas concepções e cresce a subjetivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s mesmas, se não ver<strong>da</strong>deiramente de fato, pelo<br />
menos aos olhos do seu meio ambiente. Na ver<strong>da</strong>de, para a maioria, a fim de que um ponto de vista seja<br />
válido, precisa colher o maior número possível de aplausos, independentemente dos argumentos<br />
apresentados em seu favor. "Ver<strong>da</strong>deiro" e "válido" é aquilo em que a maioria crê, pois confirma a<br />
igual<strong>da</strong>de de todos. Mas para uma consciência diferencia<strong>da</strong> já não é mais de todo evidente que sua<br />
própria concepção se aplique aos outros, e vice-versa. O resultado deste desenvolvimento lógico foi que<br />
21<br />
[Publicado pela primeira vez no Eranos-Jahrbuch, XIV (1946) sob o título de "Der Geist der Pyehologie". Este título se justifica pelo<br />
tema discutido naquela sessão "Geist und Natur".<br />
22<br />
Siebeck, Geschichte der Psychologie.<br />
23<br />
Na ver<strong>da</strong>de, isto só se aplica à antiga Psicologia. Em época mais recente, houve uma mu<strong>da</strong>nça considerável neste ponto de vista.