Carl Gustav Jung - A Natureza da Psique.pdf - Agricultura Celeste
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de vista literário. Declarou-me que se sentia perfeitamente bom de saúde e que, portanto, de modo<br />
nenhum devia ser tomado como paciente. Vinha-me consultar unicamente por curiosi<strong>da</strong>de psicológica.<br />
Acrescentou que era pessoa abasta<strong>da</strong> e dispunha de tempo livre para se consagrar a tudo o que quisesse.<br />
Desejava conhecer-me para que eu o introduzisse nos segredos <strong>da</strong> análise e sua teoria. Achava, entretanto,<br />
que, como pessoa normal que era, pouco interesse representava para mim, sempre habituado a me ocupar<br />
com "loucos". Tinha-me escrito alguns dias antes, perguntado-me quando eu poderia recebê-lo. No correr<br />
<strong>da</strong> conversa, depressa chegamos ao problema dos sonhos e lhe perguntei incontinenti se ele não tinha tido<br />
um sonho, na noite precedente. Ele me respondeu afirmativamente e contou-me o seguinte sonho: "Achome<br />
em uma sala de paredes nuas, onde uma pessoa, uma espécie de enfermeira, me recebe e quer obrigarme<br />
a sentar a uma mesa sobre a qual se acha uma garrafa de quefir que eu deveria tomar. Eu desejava ir<br />
ao Dr. <strong>Jung</strong>, mas a enfermeira me respondeu que eu me encontrava num hospital e que o Dr. <strong>Jung</strong> não<br />
tinha tempo para me receber".<br />
[479] O conteúdo manifesto deste sonho já nos mostra que a expectativa <strong>da</strong> visita a mim constelou<br />
de algum modo o inconsciente. As associações foram as seguintes: compartimento de paredes nuas: "uma<br />
espécie de sala de recepção glacial, como num edifício público, ou uma sala de espera de hospital.<br />
Nunca estive como doente num hospital". — A enfermeira: "Repulsiva e estrábica. Lembrava-me uma<br />
cartomante, que era também quiromante e que uma vez consultei sobre meu futuro. Durante uma doença<br />
tive uma diaconisa como enfermeira". — A garrafa de quefir: "O quefir me repugna e eu sou incapaz de<br />
tomá-lo. Minha mulher toma-o continuamente e por isso eu zombo dela, pois tem a idéia fixa de que<br />
devemos fazer sempre qualquer coisa pela nossa saúde. Recordo-me também de ter estado em um<br />
sanatório — tratava-se de uma depressão nervosa — e aí tinha de tomar quefir".<br />
[480] Neste ponto eu o interrompi, perguntado-lhe indiscretamente se sua neurose havia<br />
desaparecido completamente a partir de então. Ele procurou esquivar-se o quanto pôde, mas acabou por<br />
confessar que, de fato, sua neurose continuava como <strong>da</strong>ntes e que, na ver<strong>da</strong>de, sua mulher vinha<br />
insistindo com ele, há muito tempo, para me consultar. Ele, porém, achava que seu estado nervoso não era<br />
de exigir consulta, pois não estava padecendo <strong>da</strong>s facul<strong>da</strong>des mentais, enquanto, na ver<strong>da</strong>de, eu só<br />
cui<strong>da</strong>va dos doidos, O que lhe interessava era unicamente conhecer minhas teorias psicológicas, etc.<br />
[481] Este material nos revela em que sentido o paciente falsificava a situação: Correspondia mais<br />
a seu gosto apresentar-se diante de mim na quali<strong>da</strong>de de filósofo e psicólogo e relegar o fato de sua<br />
neurose a segundo plano. Mas o sonho o faz recordá-la desagra<strong>da</strong>velmente e o obriga a dizer a ver<strong>da</strong>de,<br />
Tem de tragar este cálice amargo. A figura <strong>da</strong> cartomante revela-nos o conceito real que ele tinha de<br />
minha ativi<strong>da</strong>de. Como lhe faz ver o sonho, ele devia primeiramente submeter-se a um tratamento, antes<br />
de poder chegar até mim.<br />
[482] O sonho retifica a situação e acrescenta o material que ain<strong>da</strong> lhe está faltando, e, deste<br />
modo, melhora a atitude do paciente. Eis aí a razão pela qual temos necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> análise do sonho em<br />
nossa terapia.<br />
[483] Eu não queria, contudo, que, só com este exemplo, se ficasse com a impressão de que todos<br />
os sonhos se apresentam com tamanha simplici<strong>da</strong>de ou que todos sejam do mesmo tipo. É ver<strong>da</strong>de que,<br />
na minha opinião, todos os sonhos têm um caráter compensador em relação aos conteúdos conscientes,<br />
mas longe de mim pensar que a função compensadora se apresente com tanta clareza em todos os sonhos<br />
como neste exemplo. Embora o sonho contribua para a auto-regulação psicológica do indivíduo, reunindo<br />
mecanicamente tudo aquilo que an<strong>da</strong>va recalcado, desprezado, ou mesmo ignorado, contudo, o seu<br />
significado compensador muitas vezes não aparece imediatamente, porque apenas dispomos de<br />
conhecimentos imperfeitíssimos a respeito <strong>da</strong> natureza e <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> psique humana. Há, porém,<br />
compensações psicológicas, aparentemente muito remotas. Nestes casos, devemos lembrar-nos de que<br />
ca<strong>da</strong> indivíduo, em certa medi<strong>da</strong>, representa a humani<strong>da</strong>de inteira e sua história. E aquilo que foi possível<br />
em escala natural na história <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, é possível também em escala reduzi<strong>da</strong>, na vi<strong>da</strong> de ca<strong>da</strong><br />
indivíduo. Em determina<strong>da</strong>s circunstâncias, este sentirá as mesmas necessi<strong>da</strong>des pelas quais a<br />
humani<strong>da</strong>de tem passado. Não há razão, portanto, para nos espantar, se virmos que as compensações<br />
religiosas desempenham papel tão importante. Que isto aconteça precisamente em nossa época, talvez<br />
com maior intensi<strong>da</strong>de do que antes, não é senão uma conseqüência natural do materialismo reinante de<br />
nossa cosmovisão.<br />
[484] Que o significado compensador dos sonhos não é uma invenção nova nem o produto de uma<br />
interpretação tendenciosa, mostra-o antigo e bem conhecido sonho, descrito no capítulo IV (7-13) do livro