Carl Gustav Jung - A Natureza da Psique.pdf - Agricultura Celeste
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XII – ESPÍRITO E VIDA 204<br />
[601] A conexão entre espírito e vi<strong>da</strong> é um <strong>da</strong>queles problemas cujo tratamento envolve fatores de<br />
tal complexi<strong>da</strong>de, que devemos nos pôr em guar<strong>da</strong>, a fim de não nos emaranharmos na trama <strong>da</strong>s palavras<br />
com que procuramos capturar os grandes enigmas. Pois, como poderemos inserir aqueles complexos<br />
quase ilimitados de fatos que chamamos de "espírito" ou "vi<strong>da</strong>", na corrente do pensar, senão revestindoos<br />
de conceitos verbais, também eles meras fichas de contar do intelecto? Esta dúvi<strong>da</strong> quanto à vali<strong>da</strong>de<br />
do conceito verbal, por inconveniente que seja, parece-me particularmente oportuna, quando nos<br />
apressamos a falar de coisas fun<strong>da</strong>mentais. Por certo, "espírito" e "vi<strong>da</strong>" são palavras familiares e mesmo<br />
velhas conheci<strong>da</strong>s, peças de xadrez movi<strong>da</strong>s há milhares de anos, para diante e para trás, no tabuleiro do<br />
pensamento. Mas o problema deve ter surgido já nas brumas <strong>da</strong> pré-história, quando alguém fez a<br />
descoberta desconcertante de que o sopro vital que abandona o corpo no último estertor [Röcheln, em<br />
alemão] do moribundo, significa muito mais do que apenas o ar em movimento. Por isto provavelmente<br />
não é por mero acaso que palavras onomatopaicas tais como ruah (hebraico), ruh (árabe) e roho (svahili)<br />
signifiquem "espírito", não menos claramente do que o grego pneuma [pneuma] e o latino spiritus.<br />
[602] Apesar de estarmos familiarizados com o conceito verbal em questão, sabemos, de fato, o<br />
que é realmente o espírito? Ou estamos certos de que, empregando esta palavra, exprimimos, todos, uma<br />
só e mesma coisa? A palavra "espírito" não é um termo ambíguo e duvidoso, e mesmo desespera<strong>da</strong>mente<br />
ambíguo? O mesmo signo verbal — "espírito" — é usado para expressar uma idéia transcendente e<br />
inexprimível; em sentido mais comum, é sinônimo do inglês mind. Designa também agudeza intelectual,<br />
mas significa também fantasma, assombração. Pode igualmente expressar um complexo que produz os<br />
fenômenos espíritas, como o <strong>da</strong>s mesas girantes, os estalidos, etc. Em sentido metafórico, denota a atitude<br />
dominante no seio de um grupo social particular — "o espírito que aí prevalece". Finalmente, é usado<br />
para designar uma quali<strong>da</strong>de material, por ex.: "espírito" de vinho, bebi<strong>da</strong>s "espirituosas" em geral. Não<br />
se trata de uma brincadeira de mau gosto — é parte <strong>da</strong> herança venerável de nossa língua, embora não<br />
deixe de ser também um peso que paralisa o pensamento, um trágico obstáculo para todos aqueles que<br />
esperam subir às alturas etéreas <strong>da</strong>s idéias puras, usando as esca<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s palavras. Com efeito, quando<br />
pronuncio a palavra "espírito", por mais cui<strong>da</strong>do que eu tenha em definir o sentido que pretendo<br />
comunicar no momento em que falo, não consigo de todo impedir que permaneça a aura de imprecisão e<br />
de ambigüi<strong>da</strong>de que a envolve.<br />
[603] Por isto devemos colocar-nos a nós próprios a questão fun<strong>da</strong>mental: Que significa<br />
propriamente a palavra "espírito", quando usa<strong>da</strong> em conexão com o conceito de vi<strong>da</strong>? Em circunstância<br />
nenhuma se deve supor tacitamente que, no fundo, todo mundo sabe precisamente o que significam os<br />
termos "espírito" e "vi<strong>da</strong>".<br />
[604] Não sou filósofo, mas empirista e, por isto, em to<strong>da</strong>s as questões difíceis, inclino-me mais a<br />
deixar que a experiência deci<strong>da</strong>. Mas onde não é possível encontrar uma base empírica tangível, prefiro<br />
deixar a questão sem resposta. Por isto, o meu objetivo constante é reduzir os fatores abstratos a seu<br />
conteúdo empírico, para ter alguma certeza de conhecer também aquilo de que estou falando. Devo<br />
confessar que ignoro o que seja simplesmente o espírito, <strong>da</strong> mesma forma como não sei o que seja a vi<strong>da</strong><br />
em si. Conheço a "vi<strong>da</strong>" somente sob a forma de um corpo vivo; mas o que ele seja em si e por si, em seu<br />
estado abstrato, nem sequer obscuramente o consigo imaginar. Assim, em vez de vi<strong>da</strong>, devo falar<br />
primeiramente do corpo vivo, e, em vez de espírito, devo falar de fatores psíquicos. Isto não quer dizer<br />
que eu me desvie <strong>da</strong> questão inicialmente coloca<strong>da</strong>, para me entregar a uma reflexão sobre o corpo e a<br />
alma. Pelo contrário, espero que a abor<strong>da</strong>gem empírica ajude-nos a encontrar uma base real para o<br />
espírito — e isto sem sacrifício para a vi<strong>da</strong>.<br />
[605] O conceito de corpo vivo nos oferece muito menos dificul<strong>da</strong>des para nosso trabalho de<br />
eluci<strong>da</strong>ção do que o conceito geral de vi<strong>da</strong>, porque o corpo é uma reali<strong>da</strong>de visível e palpável, que<br />
corresponde mais à nossa capaci<strong>da</strong>de de expressão. Por isto podemos facilmente admitir que o corpo é<br />
um sistema fechado em si, constituído de uni<strong>da</strong>des materiais e a<strong>da</strong>ptado às finali<strong>da</strong>des <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e, como<br />
tal, é um fenômeno <strong>da</strong> enti<strong>da</strong>de vital capta<strong>da</strong> pelos nossos sentidos. Ou, dito em termos mais simples, é<br />
204 [Conferência pronuncia<strong>da</strong> a 29 de outubro de 1926, na Literarische Gesellschaft Augsburg (Socie<strong>da</strong>de Literária de Augsburgo) no quadro<br />
de uma série de conferências sobre o tema: "<strong>Natureza</strong> e espírito"].