Carl Gustav Jung - A Natureza da Psique.pdf - Agricultura Celeste
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[582] O que estes três tipos de fenômenos têm em comum é D fato de que a psique em si não é<br />
uma uni<strong>da</strong>de indivisível, mas um todo divisível e mais ou menos dividido. Embora as partes separa<strong>da</strong>s<br />
estejam liga<strong>da</strong>s entre si, contudo, são relativamente independentes, a tal ponto que certas partes <strong>da</strong> alma<br />
jamais aparecem associa<strong>da</strong>s ao eu, ou se lhe associam apenas raramente. A estas partes <strong>da</strong> alma chamei de<br />
complexos autônomos e fundei minha teoria dos complexos <strong>da</strong> psique sobre a sua existência. 191 Segundo<br />
esta teoria, o complexo do eu forma o centro característico de nossa psique. Mas é apenas um dentre<br />
vários complexos. Os outros complexos aparecem associados, mais ou menos freqüentemente, ao<br />
complexo do eu, e deste modo se tornam conscientes, mas podem existir também por um longo período<br />
de tempo sem se associarem ao eu. Um exemplo excelente e muito conhecido, deste fenômeno, é a<br />
psicologia <strong>da</strong> conversão de Paulo. Embora pareça que o momento <strong>da</strong> conversão tenha sido absolutamente<br />
repentino, contudo, sabemos por longa e varia<strong>da</strong> experiência que uma transformação tão fun<strong>da</strong>mental<br />
exige um longo período de incubação. E só quando esta preparação está completa, isto é, quando o<br />
indivíduo está maduro para a conversão, é que a nova percepção irrompe com violenta emoção. Saulo já<br />
era inconscientemente cristão desde muito tempo, e isto explicaria seu ódio fanático contra os cristãos,<br />
porque o fanatismo se encontra sempre naqueles indivíduos que procuram reprimir uma dúvi<strong>da</strong> secreta. É<br />
por isto que os convertidos são sempre os piores fanáticos. A aparição de Cristo no caminho de Damasco<br />
assinala apenas o momento em que o complexo inconsciente de Cristo se associa ao eu de Paulo. O fato<br />
de Cristo lhe ter aparecido, então, de modo quase objetivo, como visão, se explica pela circunstância de<br />
que o cristianismo de Saulo era um complexo inconsciente. Por isto é que este complexo lhe aparecia sob<br />
a forma de projeção, como não pertencendo a ele próprio. Ele não podia ver-se a si mesmo como cristão.<br />
Por isto ficou cego, em conseqüência de sua resistência a Cristo e só pôde ser curado de novo por um<br />
cristão. Sabemos, por experiência, que a cegueira psicógena em questão é sempre uma recusa<br />
(inconsciente) a ver. No caso de Saulo, esta atitude corresponde à sua resistência fanática ao Cristianismo.<br />
Esta resistência, como nos mostra a Escritura, nunca desapareceu inteiramente em Paulo; ela irrompia<br />
ocasionalmente sob a forma de acessos, erroneamente explicados como epilepsia. Estes acessos<br />
correspondiam a um retorno subitâneo do complexo de Saulo, complexo que se dissociou com a<br />
conversão, como já acontecera com o complexo de Cristo.<br />
[583] Por questão de honesti<strong>da</strong>de intelectual, não podemos <strong>da</strong>r uma explicação metafísica ao caso<br />
de Paulo, pois, do contrário, teríamos de explicar também metafisicamente todos os casos semelhantes,<br />
ocorridos com nossos pacientes. Isto nos levaria a conclusões totalmente absur<strong>da</strong>s que repugnam não<br />
somente à razão como também aos sentimentos.<br />
[584] É nos sonhos, nas visões, nas alucinações patológicas e nas idéias delirantes onde mais<br />
claramente se destacam os complexos autônomos <strong>da</strong> psique. Como o eu não tem consciência destes<br />
complexos, os quais, por isto mesmo, lhe são estranhos, eles aparecem primeiramente sob forma<br />
projeta<strong>da</strong>. Nos sonhos eles são representados por outras pessoas; nas visões são projetados, por assim<br />
dizer, no espaço, precisamente como as vozes nas perturbações mentais, se é que os doentes não as<br />
atribuem diretamente às pessoas que estão à sua volta. As idéias de perseguição, como sabemos, estão<br />
liga<strong>da</strong>s freqüentemente a determina<strong>da</strong>s pessoas em que o paciente projeta as quali<strong>da</strong>des de seu próprio<br />
complexo inconsciente. Ele considera estas pessoas como inimigas, porque seu eu é hostil ao complexo<br />
inconsciente, mais ou menos como fazia Saulo em relação ao complexo de Cristo que ele desconhecia.<br />
Ele perseguia os cristãos como representantes deste complexo de que ele não se <strong>da</strong>va conta. Vemos este<br />
fenômeno repetir-se constantemente em nossa vi<strong>da</strong> quotidiana: encontramos indivíduos que não hesitam o<br />
mínimo em projetar suas próprias opiniões sobre pessoas e coisas, odiando-as ou amando-as com a<br />
mesma facili<strong>da</strong>de. Como a análise e a reflexão são processos complicados e difíceis, eles preferem julgar<br />
tranqüilamente, sem <strong>da</strong>r-se conta de que simplesmente estão projetando algo que trazem dentro de si e<br />
deste modo não percebem que são vítimas de uma estúpi<strong>da</strong> ilusão. Não se apercebem <strong>da</strong> injustiça e <strong>da</strong><br />
falta de amor que tal procedimento implica, e sobretudo não consideram a grave per<strong>da</strong> de personali<strong>da</strong>de<br />
que eles sofrem, quando, por mero desleixo, se permitem o luxo de transferir seus próprios erros ou<br />
méritos para outros. Sob qualquer aspecto, é extremamente inconveniente pensarmos que os outros são<br />
tão estúpidos e tão inferiores quanto nós próprios, e deveríamos tomar consciência do <strong>da</strong>no que causamos,<br />
transferindo espontaneamente nossas próprias boas quali<strong>da</strong>des para salteadores morais, sempre ávidos de<br />
novas presas.<br />
191 Cf. "Considerações gerais sobre a teoria dos complexos" [Tratado III deste volume].