Carl Gustav Jung - A Natureza da Psique.pdf - Agricultura Celeste
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XIII – O PROBLEMA FUNDAMENTAL DA PSICOLOGIA MODERNA 205<br />
[649] Enquanto a I<strong>da</strong>de Média, a Antigüi<strong>da</strong>de clássica e mesmo a humani<strong>da</strong>de inteira desde seus<br />
primórdios acreditavam na existência de uma alma substancial, a segun<strong>da</strong> metade do século XIX viu<br />
surgir uma psicologia "sem alma". Sob a influência do materialismo científico, tudo o que não podia ser<br />
visto com os olhos nem apalpado com as mãos foi posto em dúvi<strong>da</strong>, ou pior, ridicularizado, porque<br />
suspeito de metafísica. Só era "científico" e, por conseguinte, aceito como ver<strong>da</strong>deiro, o que era<br />
reconheci<strong>da</strong>mente material ou podia ser deduzido a partir de causas acessíveis aos sentidos. Esta mu<strong>da</strong>nça<br />
radical não começou com o materialismo científico, mas foi prepara<strong>da</strong> desde longa <strong>da</strong>ta. Quando a i<strong>da</strong>de<br />
gótica, com seu impulso em direção as alturas, mas com uma base geográfica e uma concepção do mundo<br />
muito limita<strong>da</strong>s, ruiu, aluí<strong>da</strong> pela catástrofe espiritual que foi a Reforma, a linha horizontal em que se<br />
desenvolve a consciência moderna interferiu na linha vertical do espírito europeu. A consciência deixou<br />
de se desenvolver para o alto, mas ampliou-se horizontalmente, tanto do ponto de vista geográfico, como<br />
do ponto de vista filosófico. Foi a época <strong>da</strong>s grandes viagens de descobrimento e <strong>da</strong> ampliação empírica<br />
de nossas concepções relativas ao mundo. A crença na substanciali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma foi substituí<strong>da</strong> pouco a<br />
pouco pela convicção ca<strong>da</strong> vez mais instransigente quanto à substanciali<strong>da</strong>de do mundo material, até que,<br />
por fim, após quatro séculos, os expoentes <strong>da</strong> consciência européia, os pensadores e pesquisadores vissem<br />
o espírito em uma dependência total em relação à matéria e às causas materiais.<br />
[650] Seria, certamente, injusto atribuir à Filosofia ou às Ciências naturais a responsabili<strong>da</strong>de por<br />
esta reviravolta total. Entretanto, houve sempre um número considerável de filósofos e homens de<br />
Ciência inteligentes que não assistiram, sem protestar — por uma suprema intuição e com to<strong>da</strong> a<br />
profundi<strong>da</strong>de de seu pensamento — a essa inversão irracional dos pontos de vista; alguns chegaram<br />
mesmo a opor-se a ela, mas não encontraram seguidores, e sua resistência mostrou-se impotente face à<br />
on<strong>da</strong> irracional <strong>da</strong> preferência sentimental e universal pelo mundo físico. Não se pense que uma mu<strong>da</strong>nça<br />
tão radical no seio <strong>da</strong> concepção <strong>da</strong>s coisas possa ser o fruto de reflexões racionais, pois não há<br />
especulação racional capaz de provar ou de negar tanto o espírito quanto a matéria. Estes dois conceitos<br />
— como qualquer pessoa inteligente de hoje poderá deduzir por si mesma — na<strong>da</strong> mais são do que<br />
símbolos usados para expressar fatores desconhecidos cuja existência é postula<strong>da</strong> ou nega<strong>da</strong> ao sabor dos<br />
temperamentos individuais ou <strong>da</strong> on<strong>da</strong> do espírito <strong>da</strong> época. Na<strong>da</strong> impede a especulação intelectual de ver<br />
na psique um fenômeno bioquímico complexo, reduzindo-a, assim, em última análise, a um jogo de<br />
elétrons, ou, pelo contrário, de declarar que a presente ausência de regras que impera no interior do átomo<br />
é uma vi<strong>da</strong> espiritual.<br />
[651] O fato de a metafísica do espírito ter sido suplanta<strong>da</strong> no curso do século XIX por uma<br />
metafísica <strong>da</strong> matéria, é, intelectualmente falando, uma mera prestidigitação, mas, do ponto de vista<br />
psicológico, é uma revolução inaudita <strong>da</strong> visão do mundo. Tudo o que é extramun<strong>da</strong>no se converte em<br />
reali<strong>da</strong>des imediatas; o fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong>s coisas, a fixação de qualquer objetivo e mesmo o significado final<br />
<strong>da</strong>s coisas não podem ultrapassar as fronteiras empíricas. A impressão que a mente ingênua tem é a de<br />
que qualquer interiori<strong>da</strong>de invisível torna exteriori<strong>da</strong>de visível, e que todo valor se fun<strong>da</strong>menta<br />
exclusivamente sobre a pretensa reali<strong>da</strong>de dos fatos.<br />
[652] Qualquer tentativa de abor<strong>da</strong>r esta mu<strong>da</strong>nça irracional de opinião sob o ponto de vista <strong>da</strong><br />
Filosofia está fa<strong>da</strong><strong>da</strong> ao insucesso. Melhor é desistir, porque, se em nossos dias alguém sustentar que os<br />
fenômenos intelectuais e psíquicos se devem à ativi<strong>da</strong>de glandular, pode estar certo de que terá o aplauso<br />
e a veneração de seu auditório, ao passo que, se um outro pretendesse explicar o processo de<br />
decomposição atômica <strong>da</strong> matéria estrelar como sendo uma emanação do espírito criador do mundo, este<br />
mesmo público simplesmente deploraria a anomalia intelectual do conferencista. E, no entanto, ambas as<br />
explicações são igualmente lógicas, igualmente metafísicas, igualmente arbitrárias e igualmente<br />
simbólicas. Do ponto de vista epistemológico é tão válido afirmar que o homem descende de uma espécie<br />
animal, quanto as espécies animais do homem. Mas, como se sabe, este pecado contra o espírito <strong>da</strong> época<br />
[Zeitgeist] produziu conseqüências desastrosas para a carreira acadêmica de Dacqué. 206 Não se deve<br />
205 [Conferência pronuncia<strong>da</strong> no Kulturbund (Federação Cultural) de Viena, em 1931, e publicado pela primeira vez em Europäische Revue,<br />
VII (1931), ambas as vezes sob titulo de Die Entschleierung der Seele (Tirando os Véus <strong>da</strong> Alma)].<br />
206 [O Autor se refere a Edgard Viktor August Dacqué, paleontólogo e filósofo nascido em 1878 a falecido em 1945, o qual reformulou a<br />
teoria evolucionista de Darwin, ensinando que o homem estaria fun<strong>da</strong>mentalmente presente sob uma forma metafísica original ao longo de