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Roma e as sociedades - Núcleo de Estudos da Antiguidade - UERJ

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A narrativa também inverte a perspectiva <strong>de</strong> soberania. No mundo do visionário, não é o Império<br />

<strong>Roma</strong>no que reina sobre o mundo. Ele, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, é o resultado <strong>de</strong> um ato <strong>de</strong>sesperado <strong>de</strong> uma<br />

personagem que não tem muito tempo. Seu reinado é concedido pelo Dragão (Ap 13), e tolerado por Deus.<br />

Entretanto, uma d<strong>as</strong> característic<strong>as</strong> básic<strong>as</strong> <strong>de</strong>sse reinado concedido é sua efemeri<strong>da</strong><strong>de</strong>. Como o Dragão, ele<br />

tem um prazo curto. Neste momento, n<strong>as</strong> regiões celestiais, o Cor<strong>de</strong>iro já é soberano, num governo que só é<br />

<strong>da</strong>do a ver quem se insere no mundo construído d<strong>as</strong> visões <strong>da</strong> narrativa. M<strong>as</strong> o visionário espera que <strong>de</strong>ntro<br />

em breve o mundo do Cor<strong>de</strong>iro venha a substituir o mundo do Dragão, o Império <strong>Roma</strong>no. No hino cantado<br />

pelos irmãos martirizados (Ap 12.11-12), ain<strong>da</strong> <strong>de</strong> forma proléptica, acontece uma completa inversão <strong>de</strong><br />

reinados.(22)<br />

No mundo do visionário só existem dois tipos <strong>de</strong> pesso<strong>as</strong>: os seguidores autênticos <strong>de</strong> Jesus, e os<br />

<strong>de</strong>mais. Os <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro e os <strong>de</strong> fora. Os <strong>de</strong> fora, entretanto, não são apen<strong>as</strong> aqueles que não compartilham<br />

dos elementos tradicionais <strong>da</strong> sua fé, m<strong>as</strong> também aqueles que são <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, do grupo, m<strong>as</strong><br />

não têm coragem para levar sua fé até <strong>as</strong> últim<strong>as</strong> conseqüênci<strong>as</strong>, não se ajustando aos i<strong>de</strong>ais rígidos <strong>de</strong><br />

pertença do visionário. Os medrosos, <strong>as</strong>sim, não têm lugar no grupo dos seguidores do Cor<strong>de</strong>iro (Ap 21.8).<br />

O visionário quer levar sua audiência a perceber que o número dos seguidores não é mais o<br />

importante. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, eles não <strong>de</strong>ixariam <strong>de</strong> ser uma minoria diante dos habitantes do mundo. É uma<br />

minoria odia<strong>da</strong> por todos, m<strong>as</strong> que insiste com seus membros para, n<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> <strong>de</strong> Pagels, “rejeitar todo o<br />

universo social e religioso em que haviam n<strong>as</strong>cido”.(23) É uma minoria, m<strong>as</strong> que representaria, <strong>de</strong> fato, o<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro povo <strong>de</strong> Deus na terra.<br />

Possivelmente, como <strong>de</strong>staca Pagels, alguns grupos cristãos tentavam se portar <strong>de</strong> forma diferente,<br />

ain<strong>da</strong> enten<strong>de</strong>ndo <strong>as</strong> pesso<strong>as</strong> <strong>de</strong> seus círculos sociais como convertidos em potencial, tentando, <strong>as</strong>sim, ain<strong>da</strong><br />

manter os laços sociais.(24) Diante <strong>da</strong> narrativa do Dragão e a Mulher, entretanto, essa não é uma<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. O mundo que ela constrói, e a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> religiosa que ela promove, é um convite a que os<br />

cristãos ingressem num novo círculo <strong>de</strong> relações, e rompam com os antigos laços <strong>de</strong> parentesco, filiação e<br />

amiza<strong>de</strong>.(25) O visionário persua<strong>de</strong> sua audiência para que efetivamente troquem <strong>de</strong> mundo. Devem<br />

abandonar o mundo construído i<strong>de</strong>ologicamente pelo Império <strong>Roma</strong>no, pelo seu, construído visionariamente,<br />

por revelação celestial.<br />

A forma como o visionário faz isso é através <strong>de</strong> uma inversão simbólica. Símbolos usados pelo<br />

Império <strong>Roma</strong>no para promover a i<strong>de</strong>ologia imperial são invertidos, ou são inseridos numa nova corrente<br />

tradicional simbólica.(26) É o que acontece com o a narrativa do Dragão e a Mulher. N<strong>as</strong>ci<strong>da</strong> do mito do<br />

n<strong>as</strong>cimento <strong>de</strong> Apolo, ela se torna ain<strong>da</strong> mais apropria<strong>da</strong> porque alguns imperadores romanos se autoi<strong>de</strong>ntificavam<br />

com Apolo e apontavam <strong>Roma</strong> como a mãe, Leto.(27) Apocalipse 12, entretanto, rejeita esse<br />

clamor <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e legaci<strong>da</strong><strong>de</strong>.(28) Nele, a mãe primordial não é <strong>Roma</strong>, nem gera o Imperador; antes, é matriz<br />

do Messi<strong>as</strong>, e gera os cristãos perseguidos pelo Dragão.<br />

Como Wink enfatiza, diferentemente dos antigos adversários no Mito do Combate, que geralmente<br />

representavam o caos e a anarquia, o Dragão em Apocalipse 12 está por trás <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ologia <strong>da</strong> Pax <strong>Roma</strong>na.<br />

Segundo esse autor, o visionário percebe “que a or<strong>de</strong>m não é o antônimo do caos, m<strong>as</strong> antes o meio pelo<br />

qual se mantém um sistema <strong>de</strong> caos entre <strong>as</strong> nações”.(29)<br />

Apesar do conjunto <strong>da</strong> inversão simbólica não estar completo no capítulo 12, ele é imprescindível<br />

para trazer o Dragão para o cenário <strong>da</strong> narrativa do Apocalipse. Com o Dragão em cena, o visionário o coloca<br />

como o criador do po<strong>de</strong>r do Império, na figura d<strong>as</strong> best<strong>as</strong> do mar e <strong>da</strong> terra. A inversão simbólica, então, se<br />

dá por completo. O império não é divino, m<strong>as</strong> diabólico. Su<strong>as</strong> ações não trazem or<strong>de</strong>m, m<strong>as</strong> caos. Seu<br />

clamor divino é um convite à prostituição, na imagem <strong>da</strong> prostituta do capítulo 17.<br />

O conflito simbólico subjacente ao texto, então, se concretiza numa guerra simbólica. O visionário<br />

manipula os símbolos adversários e confronta-os com os seus próprios. Ele reafirma os seus, e <strong>de</strong>sarticula os<br />

símbolos romanos. Com isso, o universo inteiro é re-mapeado.(30) Esse grupo <strong>de</strong> marginalizados agora po<strong>de</strong><br />

se ver como o centro do mundo. O mundo gira em torno <strong>de</strong>les, já que a história <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong> p<strong>as</strong>sa por<br />

su<strong>as</strong> mãos, ou pelo sangue que eles <strong>de</strong>rramarão pelo Cor<strong>de</strong>iro.<br />

A principal função i<strong>de</strong>ológica <strong>da</strong> narrativa do Dragão e a mulher, <strong>as</strong>sim, pelo menos no seu formato<br />

atual, é produzir ruptura social, sectarismo religioso, e fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> ao testemunho <strong>de</strong> Jesus. Apesar <strong>de</strong> tod<strong>as</strong> <strong>as</strong><br />

aparênci<strong>as</strong>, o visionário leva sua audiência a se consi<strong>de</strong>rar vencedora. Agora, <strong>de</strong> forma proléptica; em breve,<br />

<strong>de</strong> forma concreta. M<strong>as</strong> sempre em função do sangue do cor<strong>de</strong>iro e do seu próprio testemunho. Eles<br />

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