Roma e as sociedades - Núcleo de Estudos da Antiguidade - UERJ
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O CRISTIANISMO NO IMPÉRIO ROMANO A PARTIR DA LEITURA DE APOCALIPSE DE JOÃO(1)<br />
Valtair Miran<strong>da</strong> - UMESP/SP<br />
Neste texto, a partir <strong>da</strong> leitura do livro <strong>de</strong> Apocalipse <strong>de</strong> João, principalmente o seu capítulo 12,<br />
discutiremos dois tem<strong>as</strong> nucleares: a construção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> religiosa e a interação social no contexto do<br />
Império <strong>Roma</strong>no do final do primeiro século. A narrativa do Dragão e a Mulher (Apocalipse 12.1-18) se revela<br />
o resultado <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> tradições mític<strong>as</strong> e religios<strong>as</strong> reunid<strong>as</strong> e trabalhad<strong>as</strong> <strong>de</strong> forma retórica para<br />
produzir ruptura social, e, subseqüentemente, construir um mundo em oposição à i<strong>de</strong>ologia imperial romana.<br />
Para isso, ela transporta um conflito religioso e social para o nível cósmico, <strong>de</strong> forma dualística, <strong>de</strong>monizando<br />
os adversários, num processo circular com tendência <strong>de</strong> realimentação contínua.<br />
Como comenta Peixoto, no confronto <strong>de</strong> pequen<strong>as</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s com gran<strong>de</strong>s cultur<strong>as</strong><br />
globalizantes, a pressão sobre esses pequenos grupos ten<strong>de</strong> a produzir reforço <strong>de</strong> discurso, uma forca<br />
motivadora capaz <strong>de</strong> mobilizar e reconstruir a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> do grupo. Ocorre aquilo que ele chama <strong>de</strong> resimbolização,<br />
um “processo <strong>de</strong> recuperação e re-interpretação do conjunto <strong>de</strong> elementos simbólicos<br />
tradicionais para construir novo sentido para a vi<strong>da</strong>”.(2) O que se percebe é que mesmo se fechando, o grupo<br />
minoritário é alterado. Ele se torna mais rígido e apegado a tradições.(3) São forç<strong>as</strong> causais que, como<br />
argumenta Thompson, formam círculos que se realimentam.(4) Desta forma, Apocalipse 12 constrói um<br />
universo simbólico para fazer frente ao mundo simbólico construído pela i<strong>de</strong>ologia romana.<br />
Em foco a interação social<br />
O Apocalipse <strong>de</strong> João pertence ao contexto <strong>da</strong> plurali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos cristianismos <strong>da</strong> Ásia Menor no final<br />
do primeiro século. Nesta região, os vários grupos cristãos conviveram em alguns momentos como parceiros,<br />
noutros como rivais.(5) Em função disso, o tom polêmico do Apocalipse alimenta a perspectiva <strong>de</strong> que a<br />
audiência do livro não compartilha <strong>de</strong> muit<strong>as</strong> <strong>de</strong> su<strong>as</strong> visões. Aqui se insere a narrativa do capítulo 12 <strong>de</strong><br />
Apocalipse, construí<strong>da</strong> i<strong>de</strong>ologicamente para gerar uma visão <strong>de</strong> mundo.<br />
A audiência à qual se dirige Apocalipse estava inseri<strong>da</strong> no contexto <strong>da</strong> Ásia Menor, uma província<br />
que, segundo Thompson, tinha <strong>as</strong>similado a cultura e estrutura romana com pouc<strong>as</strong> dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s. A i<strong>de</strong>ologia<br />
do império oferecia aos moradores <strong>de</strong>ssa região uma coerente e or<strong>de</strong>na<strong>da</strong> estrutura <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, unificando<br />
num só sistema <strong>as</strong>pectos religiosos, sociais, econômicos, políticos e estéticos <strong>de</strong> mundo.(6)<br />
O Império vendia uma propagan<strong>da</strong> <strong>de</strong> paz, segurança e prosperi<strong>da</strong><strong>de</strong> para os moradores cristãos<br />
urbanos <strong>da</strong> Ásia, propagan<strong>da</strong> essa que parecia estar entrando n<strong>as</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s cristãs às quais o visionário<br />
escreve.(7) Como não há indicações <strong>de</strong> que um ambiente concreto <strong>de</strong> perseguição e opressão política e<br />
social esteja subjacente ao texto, a relação dos crentes com a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> po<strong>de</strong>ria, neste momento, ser uma<br />
questão <strong>de</strong>cidi<strong>da</strong> por ca<strong>da</strong> igreja, ou pelos lí<strong>de</strong>res <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Contra este tipo <strong>de</strong> situação o<br />
visionário conflita, para alertar contra o perigo <strong>da</strong> acomo<strong>da</strong>ção a <strong>as</strong>pectos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>.(8)<br />
Em função disso, a narrativa do Dragão e a mulher po<strong>de</strong> ser compreendi<strong>da</strong> como um instrumento<br />
<strong>de</strong> sectarização. Ela mescla tradições religios<strong>as</strong> e polític<strong>as</strong>, apontando adversários on<strong>de</strong> alguns cristãos<br />
po<strong>de</strong>riam não estar vendo. Ao unir referênci<strong>as</strong> a inimigos políticos e históricos <strong>da</strong> nação <strong>de</strong> Israel com o mito<br />
<strong>da</strong> guerra no céu, inserindo-os na história <strong>da</strong> salvação e do n<strong>as</strong>cimento do Messi<strong>as</strong>, o visionário transforma o<br />
mundo à sua volta num ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro campo <strong>de</strong> batalha escatológica. A guerra já está <strong>de</strong>clara<strong>da</strong>, e não se po<strong>de</strong><br />
fugir <strong>de</strong>la. A que<strong>da</strong> do Dragão está inseri<strong>da</strong> num discurso político-religioso. Afinal, é <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>sse evento que<br />
ele levantará a gran<strong>de</strong> besta, o Império <strong>Roma</strong>no (Ap 13). O visionário aponta <strong>Roma</strong> como uma conseqüência<br />
<strong>da</strong> <strong>de</strong>rrota cósmica do Dragão e seu ódio contra os causadores <strong>de</strong> sua que<strong>da</strong>.(9)<br />
O visionário procura <strong>de</strong>monstrar que o mundo <strong>de</strong>monstrado pelo Império é um mundo diabólico.<br />
Não é possível existir or<strong>de</strong>m e paz <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le porque ele agora é o espaço restrito do gran<strong>de</strong> Dragão. A<br />
propagan<strong>da</strong> imperial anunciava que o Império era representante dos <strong>de</strong>uses; até mesmo divino. O visionário<br />
o anuncia representante do Dragão; diabólico <strong>de</strong> fato. Como Prigent enfatiza, “o autor <strong>de</strong> Apocalipse afirma,<br />
com gran<strong>de</strong> energia, que o Império está a serviço <strong>de</strong> Satã, comprovado pela idolatra que emb<strong>as</strong>a todo o<br />
sistema”.(10)<br />
Para reforçar sua visão, o visionário anuncia que este embate não é novo. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é tão antigo<br />
quanto a origem do ser humano. O Dragão, a antiga serpente, sempre foi adversário do ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro povo <strong>de</strong><br />
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