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Roma e as sociedades - Núcleo de Estudos da Antiguidade - UERJ

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69<br />

OS LENÇOS BRANCOS QUE NÃO ACENAM À PAZ<br />

Maria Fernan<strong>da</strong> Garbero <strong>de</strong> Aragão Ponzio – DL/<strong>UERJ</strong><br />

Não é difícil reconhecer que, nos tempos atuais, a recorrência a tem<strong>as</strong> e motivos clássicos <strong>de</strong><br />

extração greco-latina tem sido constante e vem <strong>as</strong>sumindo divers<strong>as</strong> configurações filosófic<strong>as</strong>, antropológic<strong>as</strong>,<br />

psicológic<strong>as</strong>, literári<strong>as</strong>. Este trabalho preten<strong>de</strong> verificar <strong>as</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> diálogos emergentes em<br />

contextos <strong>de</strong> embate, aparentes na inter-relação entre a personagem sofocliana Antígona (442 a.C) e <strong>as</strong><br />

personagens reais que compõem o quadro sociopolítico argentino, conheci<strong>da</strong> como Madres <strong>de</strong> Plaza <strong>de</strong><br />

Mayo. Com a análise comparativa <strong>de</strong>ss<strong>as</strong> figur<strong>as</strong>, alguns conflitos surgem para ilustrar a precarie<strong>da</strong><strong>de</strong> acerca<br />

<strong>da</strong> condição humana imersa em períodos dominados pel<strong>as</strong> tirani<strong>as</strong> do silêncio e <strong>da</strong> obediência.<br />

N<strong>as</strong> antinomi<strong>as</strong> homem x mulher, senili<strong>da</strong><strong>de</strong> x juventu<strong>de</strong>, indivíduo x socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, vivos x mortos e<br />

homem x Deus (ou <strong>de</strong>uses), enxergam-se enfrentamentos nos quais não existe possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> alguma <strong>de</strong><br />

negociação e, por isso, o insolúvel conflito se mostra absolutamente trágico. Ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>ss<strong>as</strong> oposições é<br />

posta em ação por Sófocles em Antígona.<br />

Daí, provêm sua riqueza significativa e a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> aparentemente inesgotável <strong>de</strong> atualizá-la, <strong>de</strong><br />

“chamar para a vi<strong>da</strong>” o que Höl<strong>de</strong>rlin consi<strong>de</strong>rava ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s ocult<strong>as</strong>, latentes, sem que para isso existam<br />

condicionamentos a tempo ou a lugar. Além disso, tem sido possível comprovar que há tempos e lugares<br />

mais propícios para o n<strong>as</strong>cimento <strong>de</strong> novos <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>ssa história. Segundo Höl<strong>de</strong>rlin, Sófocles é um<br />

escritor <strong>de</strong> tempos <strong>de</strong> crise, <strong>de</strong> revolução e <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocação temporal. Sendo <strong>as</strong>sim, em tempos <strong>de</strong> crise, como<br />

é visto o século XX (o mais clássico <strong>de</strong> todos e mais rico em cataclismos históricos), o mito <strong>de</strong> Antígona<br />

esclarece uma d<strong>as</strong> mais fund<strong>as</strong> e doloros<strong>as</strong> questões <strong>da</strong> existência do homem, tornando possíveis releitur<strong>as</strong><br />

e diálogos <strong>de</strong>sse mito.<br />

Com a personagem <strong>de</strong> Antígona e seu enfrentamento às leis ditad<strong>as</strong> por seu tio, o tirano Creonte,<br />

surge a colisão entre amor e lei, esta vista sob uma perspectiva alheia às vonta<strong>de</strong>s do indivíduo, uma vez que<br />

preconiza or<strong>de</strong>ns que vão <strong>de</strong> encontro às prerrogativ<strong>as</strong> divin<strong>as</strong>. O imp<strong>as</strong>se e a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> negociação<br />

são oriundos do conflito que se estabelece entre vonta<strong>de</strong> e liber<strong>da</strong><strong>de</strong>. Antígona é filha <strong>de</strong> Édipo e Joc<strong>as</strong>ta,<br />

n<strong>as</strong>ci<strong>da</strong> <strong>de</strong> um matrimônio con<strong>de</strong>nado pelo incesto. Irmã <strong>de</strong> Ismene (a mulher que, na tragédia, encarna o<br />

papel subalterno legado à figura feminina), <strong>as</strong>sim como <strong>de</strong> Polinice e Etéocles (os irmãos mortos em uma luta<br />

fratrici<strong>da</strong>), Antígona, ao saber que Creonte proíbe os rituais fúnebres <strong>de</strong>stinados a Polinice <strong>de</strong>vido à sua<br />

oposição ao governo do tio e à luta com o irmão que representava os i<strong>de</strong>ais propostos pela figura do po<strong>de</strong>r,<br />

<strong>de</strong>ci<strong>de</strong> enterrá-lo, ciente <strong>de</strong> su<strong>as</strong> futur<strong>as</strong> punições, ações que <strong>de</strong>correrão na morte e no fim dos Labdácid<strong>as</strong>,<br />

um génos ao revés.<br />

Mulher, jovem e fruto <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> predominantemente m<strong>as</strong>culina, Antígona se apresenta com<br />

sua “piedosa vilania” e se entrega à morte. Sepultar o corpo, além <strong>de</strong> um direito divino, ilustra a<br />

impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> negociação entre os termos que instauram o conflito no universo sofocliano. O <strong>de</strong>stino se<br />

mostra inexoravelmente duro e inviável, <strong>da</strong>ndo p<strong>as</strong>sagem ao trágico caminho d<strong>as</strong> personagens <strong>de</strong>ssa<br />

história. Não há como se salvar. No <strong>de</strong>correr dos cinco episódios que compõem a peça, a figura <strong>de</strong>ssa jovem<br />

vai adquirindo proporções que a equiparam à tirania <strong>de</strong> Creonte, embora su<strong>as</strong> leis e sua língua sejam ditad<strong>as</strong><br />

pelo amor ao corpo do irmão, que precisa voltar à terra e ser abrigado na sepultura.<br />

Ao se pensar na divisão estrutural <strong>de</strong> Antígona e n<strong>as</strong> relações discursiv<strong>as</strong> que se estabelecem, o<br />

embate surge já no prólogo, quando Antígona convoca a irmã Ismene para, junt<strong>as</strong>, cumprirem os rituais<br />

fúnebres a Polinice. Amb<strong>as</strong> se mostram conscientes <strong>de</strong> su<strong>as</strong> <strong>de</strong>vid<strong>as</strong> punições, porém Ismene se nega, por<br />

medo e obediência, ao ato <strong>de</strong> amor suici<strong>da</strong> que lhe propõe a irmã. Numa lúci<strong>da</strong> loucura, Antígona abala a<br />

tirania sozinha e morre, dignificando a todos os que, atemporalmente, atacam a injustiça.<br />

Atacar a injustiça e mostrar <strong>as</strong> fissur<strong>as</strong> <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r que se firma sob a pena do silêncio e <strong>da</strong><br />

anulação <strong>de</strong> direitos são pontos que permitem e requisitam o paralelo em relação a vários conflitos presentes<br />

na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> atual. Luta por terr<strong>as</strong>, reconhecimento <strong>de</strong> etni<strong>as</strong> consi<strong>de</strong>rad<strong>as</strong> subaltern<strong>as</strong> e crise <strong>de</strong> soberania<br />

po<strong>de</strong>m ser vistos nessa perspectiva dialógica aqui proposta, como uma ressemantização do tema <strong>da</strong><br />

liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, seja esta <strong>de</strong> expressão, <strong>de</strong> direitos e <strong>de</strong>veres, ou simplesmente <strong>de</strong> amar.<br />

Antígona é humana, não é envia<strong>da</strong> dos <strong>de</strong>uses, o que favorece ain<strong>da</strong> mais a aproximação à<br />

capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> enfrentamento e afrontamento que se espera <strong>da</strong> esfera feminina. Entretanto, como todo herói<br />

trágico, ela pulsa entre a carência e o excesso. Ao enterrar Polinice, ela, em sua uniterali<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>sconhece a

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