Roma e as sociedades - Núcleo de Estudos da Antiguidade - UERJ
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Deus. E agora, com sua expulsão <strong>da</strong> corte celestial, ele se materializa <strong>de</strong> forma concreta na figura do Império<br />
<strong>Roma</strong>no.(11)<br />
O vi<strong>de</strong>nte olha para um p<strong>as</strong>sado recente na história dos crentes, e vê que muitos já foram<br />
martirizados por sua fé,(12) e projeta que esse será o caminho que os crentes <strong>de</strong>verão tomar. A morte será a<br />
única forma <strong>de</strong> escapar <strong>de</strong>sse mundo <strong>de</strong> forma vitoriosa. A única maneira <strong>de</strong> sobreviver seria calando o<br />
testemunho <strong>de</strong> Jesus para fugir do sofrimento que lhe é inerente. M<strong>as</strong> neste c<strong>as</strong>o, isso significaria aliar-se ao<br />
Dragão.<br />
Se o testemunho leva à morte, a morte não é <strong>de</strong>rrota. É vitória. Os martirizados no céu já po<strong>de</strong>m<br />
cantar que chegou o reino, a salvação, a glória <strong>de</strong> Deus e a soberania <strong>de</strong> Cristo. Numa gran<strong>de</strong> inversão <strong>de</strong><br />
símbolos e valores, <strong>as</strong> vítim<strong>as</strong> se mostram os ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros vitoriosos.(13) Como sinaliza Wengst, “não são os<br />
vencedores violentos <strong>da</strong> história que têm futuro, m<strong>as</strong> exatamente <strong>as</strong> su<strong>as</strong> vítim<strong>as</strong>”.(14) Também Friedrich,<br />
que enfatiza: “Paradoxalmente Jesus venceu através <strong>da</strong> morte (1.18; 2.8; 5.6; 9.12), com seus seguidores<br />
ocorre o mesmo (2.10, 13; 6.9-14; 7.14; 14.13; 20.4)”.(15)<br />
A narrativa do Dragão e a Mulher, pela forma como ele <strong>de</strong>screve o mundo, funciona como um<br />
po<strong>de</strong>roso instrumento <strong>de</strong> isolamento e ruptura social. Os cristãos <strong>de</strong>vem abandonar não apen<strong>as</strong> o culto<br />
imperial, o que parece ser um elemento <strong>de</strong> concordância entre eles. M<strong>as</strong> tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> instânci<strong>as</strong> sociais, polític<strong>as</strong><br />
e religios<strong>as</strong> <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. A forma como farão isso é trocando <strong>de</strong> mundo. Num primeiro momento, para<br />
abraçar o mundo imaginário construído e projetado pelo visionário, enten<strong>de</strong>ndo-se uma minoria persegui<strong>da</strong>,<br />
cujo lar e <strong>de</strong>stino não se encontram no aqui e agora.(16) M<strong>as</strong> num <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro e último momento, para <strong>de</strong>ixar<br />
concretamente o mundo imanente ao aceitar o martírio, para entrar no mundo celestial, e <strong>as</strong>sim fazer parte<br />
dos já vitoriosos, junto com o Cor<strong>de</strong>iro, a criança messiânica, aguar<strong>da</strong>ndo o momento em que o número dos<br />
mártires tenha se completado e o juízo sobre o mundo inteiro se concretize (Ap 6.11).<br />
Construção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> religiosa<br />
Segundo Nogueira, a maior contribuição política que uma religião po<strong>de</strong> <strong>da</strong>r a uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> é a<br />
criação <strong>de</strong> nov<strong>as</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s. A crítica a um sistema econômico, à estrutura <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e à exclusão d<strong>as</strong><br />
cl<strong>as</strong>ses baix<strong>as</strong> <strong>de</strong>corre <strong>da</strong> consciência <strong>de</strong> que se pertence a um grupo escolhido e <strong>de</strong> que nesse grupo ca<strong>da</strong><br />
qual encontra uma nova forma <strong>de</strong> existência humana.(17)<br />
Em Apocalipse 12 a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> dos cristãos é construí<strong>da</strong> numa relação direta com a tribulação, o<br />
sofrimento, a morte e o martírio. De vári<strong>as</strong> form<strong>as</strong>, forç<strong>as</strong> <strong>de</strong>moníac<strong>as</strong> ameaçam aqueles que seguem ao<br />
Deus ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro, percebid<strong>as</strong> na imagem do Dragão a perseguir a <strong>de</strong>scendência <strong>da</strong> mulher.(18)<br />
A i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> que <strong>da</strong>qui n<strong>as</strong>ce é construí<strong>da</strong> pela <strong>de</strong>monização <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> do outro, num processo<br />
que, conforme Pagels, confirma para os cristãos sua própria i<strong>de</strong>ntificação com Deus e a ligação dos seus<br />
adversários com o <strong>de</strong>moníaco.(19) Ela enten<strong>de</strong> que essa dinâmica leva aos conflitos sociais um “tipo<br />
específico <strong>de</strong> interpretação moral e religiosa, na qual ‘nós’ somos o povo <strong>de</strong> Deus e ‘eles’, os inimigos <strong>de</strong><br />
Deus, e também os nossos”.(20)<br />
Essa interpretação moral <strong>de</strong> conflitos constrói e consoli<strong>da</strong> a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> do visionário, que <strong>de</strong>seja<br />
compartilhá-la com sua audiência. Com a narrativa do Dragão e a Mulher, Apocalipse 12 exprime sua visão<br />
<strong>de</strong> pertença à comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> cristã. Quem realmente é um cristão, seguidor do Cor<strong>de</strong>iro e membro <strong>da</strong> igreja <strong>de</strong><br />
Deus? São aqueles que testemunham <strong>de</strong> sua fé como Jesus testemunhou, a ponto <strong>de</strong> morrer por ela. São<br />
aqueles que não amam a sua vi<strong>da</strong> o suficiente para barganhar a sobrevivência pela obediência aos<br />
man<strong>da</strong>mentos <strong>de</strong> Deus. São irmãos perseguidos na terra, que têm irmãos vitoriosos martirizados no céu. São<br />
todos <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>da</strong> gran<strong>de</strong> Mulher primordial, a mesma que <strong>de</strong>u origem ao Messi<strong>as</strong>, o que, <strong>de</strong> certa<br />
forma, os faz todos irmãos do Messi<strong>as</strong>. São também co-participantes <strong>da</strong> guerra cósmica na qual o Dragão foi<br />
<strong>de</strong>rrotado no céu, e o será em breve na terra.<br />
Todos estes elementos <strong>de</strong>veriam levar a audiência do visionário a se perceber como<br />
personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância na história <strong>da</strong> salvação <strong>de</strong> Deus. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> su<strong>as</strong><br />
concret<strong>as</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s sociais, em su<strong>as</strong> mãos estão os elementos dos quais <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m o tempo do fim, a<br />
<strong>de</strong>rrota do Dragão, a vitória do Cor<strong>de</strong>iro, o juízo sobre o mundo. Noutr<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong>, a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> cristã<br />
<strong>de</strong>veria se enten<strong>de</strong>r como o centro <strong>da</strong> luta escatológica do Cor<strong>de</strong>iro pelo domínio <strong>da</strong> terra, justamente porque<br />
“ela é a única que já agora reconhece e representa a reivindicação <strong>de</strong> Deus <strong>de</strong> domínio do mundo”.(21)<br />
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