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Texto completo em PDF - Museu da Vida

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ARTIGO 1<br />

ANEXOS<br />

A questão racial<br />

119<br />

Octavio Ianni *<br />

A questão racial parece um desafio do presente, mas t<strong>em</strong> sido permanente. Modifica-se ao acaso <strong>da</strong>s situações, <strong>da</strong>s formas de sociabili<strong>da</strong>de e<br />

dos jogos <strong>da</strong>s forças sociais, mas reitera-se continuamente, modifica<strong>da</strong> mas persistente. Esse é o enigma com o qual defrontam-se uns e<br />

outros, intolerantes e tolerantes, discriminados e preconceituosos, segregados e arrogantes, subordinados e dominantes, <strong>em</strong> todo o mundo.<br />

Mais do que tudo isso, a questão racial revela, de forma particularmente evidente, nuança<strong>da</strong> e estridente, como funciona a fábrica <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de, compreendendo identi<strong>da</strong>de e alteri<strong>da</strong>de, diversi<strong>da</strong>de e desigual<strong>da</strong>de, cooperação e hierarquização, dominação e alienação.<br />

Vista assim, <strong>em</strong> perspectiva ampla, a história do mundo moderno é também a história <strong>da</strong> questão racial, um dos dil<strong>em</strong>as <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de. Ao<br />

lado de outros dil<strong>em</strong>as, também fun<strong>da</strong>mentais, como as guerras religiosas, as desigual<strong>da</strong>des masculino-f<strong>em</strong>inino, o contraponto natureza e<br />

socie<strong>da</strong>de e as contradições de classes sociais, a questão racial revela-se um desafio permanente, tanto para indivíduos e coletivi<strong>da</strong>des, como<br />

para cientistas sociais, filósofos, artistas. Uns e outros com freqüência são desafiados a viver situações e/ou interpretá-las, s<strong>em</strong> alcançar a<br />

explicação, n<strong>em</strong> resolver a situação. São muitas, recorrentes e diferentes, as tensões e contradições polariza<strong>da</strong>s <strong>em</strong> termos preconceitos,<br />

xenofobias, etnicismos, segregacionismos ou racismos, multiplica<strong>da</strong>s ou reitera<strong>da</strong>s no curso dos anos, déca<strong>da</strong>s e séculos, nos diferentes<br />

países, continentes, ilhas, arquipélagos.<br />

Esse o dil<strong>em</strong>a envolvido entre Bartolomeu de Las Casas e Juan Gines de Sepúve<strong>da</strong>, na época <strong>da</strong> conquista do Novo Mundo, repetindo-se e<br />

desenvolvendo-se nas vivências e ideologias, teorias e utopias de muitos, no curso dos t<strong>em</strong>pos modernos. Essa é uma história na qual entram<br />

Herbert Spencer, Conde de Gobineau e Georges Lapouge, tanto quanto o evolucionismo e o <strong>da</strong>rwinismo social, o nazismo e o americanismo.<br />

Em certa medi<strong>da</strong>, o debate relativo ao "choque de civilizações" implica <strong>em</strong> xenofobia, etnicismo e racismo. Ao hierarquizar as "civilizações",<br />

hierarquizando também os povos, nações, nacionali<strong>da</strong>des, e etnias, é evidente que se promove a classificação, entre positiva, negativa, neutra<br />

ou indefini<strong>da</strong>, de uns e outros. Samuel P. Huntington, que classifica as "civilizações cont<strong>em</strong>porâneas" <strong>em</strong>: Chinesa, Japonesa, Hindú,<br />

Islâmica, Ocidental e Latinoamericana, está, simultaneamente, estabelecendo alguma relação entre etnia, ou raça e cultura ou civilização;<br />

uma relação cientificamente insustentável, desde Franz Boas, mesmo quando dissimula<strong>da</strong>. Essa é, obviamente, uma implicação de sua teoria,<br />

ao priorizar a "civilização ocidental" por sua escala de "modernização", "tecnificação", "produtivi<strong>da</strong>de", "prosperi<strong>da</strong>de", "lucrativi<strong>da</strong>de".<br />

Aliás, esse contrabando etnicista, xenófobo ou racista, está presente <strong>em</strong> diferentes pensadores "<strong>em</strong>penhados" <strong>em</strong> explicar o mundo <strong>em</strong> termos<br />

de "modernização", "racionalização", "tecnificação" e outros <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>as ideológicos do "ocidentalismo".<br />

É evidente que Huntington "esquece" a presença e a atuação do mercantilismo, colonialismo, imperialismo ou capitalismo, simultaneamente<br />

"ocidentalismo" na constituição do seu mapa do mundo; uma "recomposição <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> mundial" de conformi<strong>da</strong>de com a geopolítica<br />

norteamericana, arrogando-se como herdeira do "ocidentalismo", como guardião do capitalismo, ou vice e versa. Toma ca<strong>da</strong> "civilização"<br />

como se foss<strong>em</strong> essências, qualificáveis ou inqualificáveis, com referência ao padrão de civilização capitalista desenvolvi<strong>da</strong> na Europa<br />

Ocidental e nos Estados Unidos <strong>da</strong> América do Norte. Está <strong>em</strong>penhado <strong>em</strong> delinear a geopolítica de alcance mundial que está sendo exerci<strong>da</strong><br />

pelas elites governantes e as classes dominantes norteamericanas desde o fim <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial (1939-45), entrando pelo século<br />

XXI. Essa é a ideologia que informa também o pensamento e a prática de Henry Kissinger, Zbigniew Brzezinsk, Condoleezza Rice e outros.<br />

É assim que o mundo ingressa no século XXI, debatendo-se com a questão racial, tanto quanto com a intolerância religiosa, a contradição<br />

natureza e socie<strong>da</strong>de, as hierarquias masculino-f<strong>em</strong>inino, as tensões e lutas de classes. São dil<strong>em</strong>as que se desenvolv<strong>em</strong> com a moderni<strong>da</strong>de,<br />

d<strong>em</strong>onstrando que o "desencantamento com o mundo", enquanto metáfora do esclarecimento e <strong>da</strong> <strong>em</strong>ancipação continua a ser desafia<strong>da</strong> por<br />

preconceitos e superstições, intolerâncias e racismos, irracionalismos e idiossincrasias, interesses e ideologias.<br />

Esta é, <strong>em</strong> síntese, uma idéia, hipótese ou interpretação com a qual todos se defrontam cotidianamente ou de quando-<strong>em</strong>-quando: a socie<strong>da</strong>de<br />

burguesa, capitalista, fabrica contínua e reitera<strong>da</strong>mente a questão racial, assim como as desigual<strong>da</strong>des f<strong>em</strong>inino-masculino, o contraponto<br />

socie<strong>da</strong>de natureza e as contradições de classes, além de outros probl<strong>em</strong>as com implicações práticas e teóricas. São enigmas que nasc<strong>em</strong> e<br />

desenvolv<strong>em</strong>-se com a moderni<strong>da</strong>de, por dentro e por fora do "desencantamento com o mundo". A despeito de inegáveis conquistas sociais<br />

realiza<strong>da</strong>s no curso dos t<strong>em</strong>pos modernos, esses e outros enigmas se criam e recriam, desenvolv<strong>em</strong> e transfiguram, <strong>em</strong> diferentes círculos de<br />

relações sociais, não só <strong>em</strong> socie<strong>da</strong>des nacionais, como também na socie<strong>da</strong>de mundial. De par-<strong>em</strong>-par com a globalização <strong>da</strong> questão social,<br />

desenvolve-se e intensifica-se mais um ciclo de racialização do mundo, assim como de transnacionalização de movimentos sociais de todos<br />

os tipos, envolvendo f<strong>em</strong>inistas, reivindicações étnicas, tensões e lutas religiosas implica<strong>da</strong>s na geopolítica do terrorismo e crescente<br />

consciência de que o próprio planeta Terra. Esses são probl<strong>em</strong>as e enigmas <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de-nação, ou primeira moderni<strong>da</strong>de, e <strong>da</strong>

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