Texto completo em PDF - Museu da Vida
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E, nesse ponto, afasto-me do filme para refletir sobre algumas <strong>da</strong>s novas formas de subjetivi<strong>da</strong>de presentes na<br />
socie<strong>da</strong>de cont<strong>em</strong>porânea e sua relação com o discurso tecnocientífico. Se no campo <strong>da</strong> inteligência artificial<br />
persegue-se a fabricação de máquinas cria<strong>da</strong>s à imag<strong>em</strong> e s<strong>em</strong>elhança do ser humano, com capaci<strong>da</strong>de de<br />
sonhar e amar, guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s as devi<strong>da</strong>s diferenças, penso que o mesmo acontece com a engenharia genética<br />
quando por meio <strong>da</strong>s fertilizações in vitro e, de forma mais radical, dos projetos de clonag<strong>em</strong> humana, se<br />
propõe a criação de um ser feito "à imag<strong>em</strong> e s<strong>em</strong>elhança" de um humano que se queira "reproduzir". Com<br />
efeito, a técnica <strong>da</strong> clonag<strong>em</strong> traz a idéia <strong>da</strong> continui<strong>da</strong>de de um indivíduo por meio de uma cópia<br />
geneticamente idêntica, o que permite que o fenôneno <strong>da</strong> reprodução determinado pela união de um hom<strong>em</strong> e<br />
uma mulher seja deslocado para o processo de "replicação" de uma só pessoa (Luna apud Ciência Hoje)<br />
Mesmo considerando as "imensas" diferenças entre os dois processos, um el<strong>em</strong>ento que suponho ser<br />
importante ressaltar é o fato de que, tanto <strong>em</strong> um quanto <strong>em</strong> outro, o saber dito científico coloca-se como<br />
capaz de substituir o desejo sexual na produção de um ser. Nesse sentido, se a clonag<strong>em</strong> implica uma<br />
reprodução assexua<strong>da</strong>, deriva<strong>da</strong> apenas do progenitor f<strong>em</strong>inino, pois dispensa o gameta masculino, o meca<br />
David - "clone" de uma criança humana - produto de uma experiência não uterina, e portanto, não sexual,<br />
satisfaz o desejo particular do cientista e ocupa, de uma só vez, tanto o lugar do filho doente do casal, como do<br />
próprio filho já falecido do cientista. Conforme se pode ver, tanto <strong>em</strong> um campo quanto <strong>em</strong> outro, manifesta-se<br />
o desejo <strong>da</strong> produção de uma vi<strong>da</strong> fora do sexo, à mercê dos desejos, dos fantasmas e do gozo de seu criador.<br />
Como se pode perceber, com base no discurso tecnocientífico, produz-se a possibili<strong>da</strong>de não só de pensar, mas<br />
de interferir no real e fazer uma criança fora do sexo, fora do corpo, <strong>em</strong> desafio às leis do desejo e do sexo,<br />
com to<strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong>de. Como efeito lógico, o hom<strong>em</strong> é cortado de suas conseqüências na transmissão simbólica<br />
de uma filiação. Não tenho dúvi<strong>da</strong> de que o funcionamento desse discurso aponta a existência de um<br />
enfraquecimento simbólico na socie<strong>da</strong>de cont<strong>em</strong>porânea nomeado por Lacan como declínio <strong>da</strong> "imago paterna"<br />
ou declínio do "Nome-do-Pai" e que age sobre as relações entre os sujeitos na nossa cultura provocando as<br />
mais diversas formas de subjetivação (Birman, 1999). Assim sendo, in<strong>da</strong>go acerca <strong>da</strong> fantasia que sustenta tal<br />
discurso e cujos efeitos possibilita que homens e mulheres reivindiqu<strong>em</strong> para si a reprodução - ou replicação -<br />
dos filhos como fruto de sua vontade, produzidos a sua imag<strong>em</strong> e s<strong>em</strong>elhança, elidindo aí o aspecto desejante,<br />
o aspecto simbólico de uma relação com o outro. In<strong>da</strong>go ain<strong>da</strong> acerca <strong>da</strong> posição destina<strong>da</strong> a essa criança -<br />
clona<strong>da</strong> ou robotiza<strong>da</strong> - aprisiona<strong>da</strong> a uma relação dual de natureza especular, s<strong>em</strong> a presença de um terceiro<br />
que possa fazer valer uma função de corte. E aqui cabe dizer o quanto a relação David-Mônica aponta para a<br />
inexistência de Henry como pai simbólico.<br />
De fato, nesses casos, parece-me que a criança – humana ou máquina - será para a mãe - ou equivalente - um<br />
objeto s<strong>em</strong> desejo próprio, um assujeito, cujo único papel será preencher o vazio materno - no sentido <strong>da</strong>quele<br />
que pretende aí ocupar tal posição. Impossibilita<strong>da</strong> de ser reconheci<strong>da</strong> <strong>em</strong> sua diferença, essa criança é<br />
coloca<strong>da</strong> perversamente na posição de falo imaginário <strong>da</strong> mãe. Submeti<strong>da</strong> à onipotência materna, é captura<strong>da</strong><br />
pelo fantasma materno e não é sequer reconheci<strong>da</strong> como sujeito do desejo.<br />
Retornando ao filme, David, abandonado na floresta pela mãe, encontra-se com o<br />
robô-gigolô Joe (Jude Law) - criado para satisfazer as mulheres solitárias - e com<br />
ele, permanece até seu encontro definitivo com a Fa<strong>da</strong> Azul a qu<strong>em</strong> passa a se<br />
endereçar, para que o torne uma criança de ver<strong>da</strong>de. Capturados por orgas, ambos<br />
são levados à "Feira <strong>da</strong> Pele", evento <strong>em</strong> que os mecas são destruídos <strong>em</strong> grandes<br />
espetáculos. Contudo, graças a sua forma humana, David consegue fugir. A partir<br />
<strong>da</strong>í, dirige-se <strong>em</strong> direção à terra perdi<strong>da</strong> - Manhattan - <strong>em</strong> busca de uma resposta<br />
que o torne humano.<br />
No último e terceiro ato do filme, David depara-se com seu criador, que observa o<br />
fato de que, se seu filho havia ocupado a posição de o "único de uma espécie",<br />
caberia a David ocupar a posição do "primeiro de uma série". Atordoado, ele<br />
percorre a sala ao lado, deparando-se com os inúmeros mecas já construídos,<br />
todos com variações de seu rosto: "o primeiro de um série." Como <strong>em</strong> um grande<br />
supermercado, os pequenos mecas encontram-se <strong>em</strong> grandes "caixas", sendo que,<br />
na parte de cima, é possível observar uma inscrição: A love of your own.<br />
Segundo o dicionário The New Lexicon Webster’s Dictionary of the English Language, own significa: "ter,<br />
possuir, ser o proprietário que pertence a alguém" e of .. own, é uma expressão que denota uma possessão<br />
particular ou exclusiva. Assim sendo, como possíveis significações de A love of your own t<strong>em</strong>os: "Um amor que<br />
é seu; Um amor só seu; Um amor só para você; Um amor do qual você é proprietário; Um amor que você t<strong>em</strong>;<br />
Um amor exclusivo." É, portanto, uma expressão cujas significações permit<strong>em</strong> pensar <strong>em</strong> um amor - de filho -<br />
a ser comprado e, nesse contexto, com certificado de garantia. E aqui penso no quanto o discurso <strong>da</strong> ciência,<br />
aliado ao discurso do capitalismo, produz efeitos de forma a operar uma mu<strong>da</strong>nça nos ideais que orientam<br />
nossa socie<strong>da</strong>de, nossa cultura, sendo possível observar a existência de uma instrumentalização <strong>da</strong> condição<br />
humana. Discurso cujo funcionamento "não cria somente um objeto para o sujeito mas um sujeito para o<br />
objeto" (Ch<strong>em</strong>ama, 1997). Não dá para esquecer que, no início do filme, o cientista - determinado por tal<br />
discurso – idealiza um filho, ain<strong>da</strong> que máquina, que implique <strong>em</strong> um amor s<strong>em</strong> falta.<br />
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O meca-gigolô Joe (Jude<br />
Law)