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Texto completo em PDF - Museu da Vida

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ComCiência - De que maneira essa dinâmica de acesso diferencial aos direitos contribui na<br />

constituição <strong>da</strong> população carcerária?<br />

Adorno - Acho que isso ocorre de uma maneira muito sutil. Eu nunca cheguei a observar se havia hierarquias<br />

internas fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s na cor e na etnia. Não posso dizer n<strong>em</strong> sim, n<strong>em</strong> não. Talvez até tivesse algum fun<strong>da</strong>mento,<br />

mas não sei dizer. Nas prisões havia manifestações muito sutis por parte dos agentes penitenciários que<br />

sugeriam para nós que os negros eram potencialmente perigosos comparativamente aos brancos. É uma<br />

cultura que não é uma cultura <strong>da</strong> prisão, é uma cultura que v<strong>em</strong> de fora e que na prisão acaba sendo<br />

reforça<strong>da</strong>. Na prisão há uma sensação de que a vi<strong>da</strong> é muito perigosa, de que todo mundo, de alguma maneira,<br />

está tentando atacar o outro. É uma vi<strong>da</strong> cheia de tocaias. A vi<strong>da</strong> na prisão é muito precária, tanto que nela o<br />

grande aprendizado é montar estratégias subjetivas para sobreviver num ambiente de perigo. O que me<br />

parecia, era que a cor, de algum modo, tornava a vi<strong>da</strong> ain<strong>da</strong> mais perigosa. O negro era aparent<strong>em</strong>ente aquele<br />

de qu<strong>em</strong> se suspeitava ataques mais freqüentes, era aquela imag<strong>em</strong> de ser mais perigoso etc. Nas prisões<br />

também havia uma vigilância mais cerra<strong>da</strong> no sentido de ficar vigiando grupos de negros. Enfim, é um<br />

preconceito que v<strong>em</strong> <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, mas que, pelas condições de controle social, é exacerbado na prisão. A<br />

prisão t<strong>em</strong> essa coisa de caricaturar as perversões <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de.<br />

ComCiência - Entender a lógica desse sist<strong>em</strong>a aju<strong>da</strong> a desmistificar essa imag<strong>em</strong> do negro como um<br />

delinqüente <strong>em</strong> potencial?<br />

Adorno - Pelos estudos que eu fiz e pelo que eu li, não estou convencido de que negro seja potencialmente<br />

mais violento do que branco. Isso para mim é um mito construído <strong>em</strong> cima <strong>da</strong> idéia de raça. Uma segun<strong>da</strong><br />

coisa que é fun<strong>da</strong>mental: muitas pessoas falam que basta ir a uma prisão e ver que lá exist<strong>em</strong> muito mais<br />

presos negros do que brancos. Quando você faz a comparação com a distribuição <strong>da</strong> cor e <strong>da</strong> etnia na<br />

população, você vê que proporcionalmente exist<strong>em</strong> mais negros dentro <strong>da</strong> prisão do que na população. Grosso<br />

modo, nas prisões paulistas, era algo mais ou menos assim: 60% brancos e 40% negros. Na população de São<br />

Paulo, os negros representam mais ou menos 25% <strong>da</strong> população. Logo, você t<strong>em</strong> uma representação <strong>da</strong><br />

população negra maior dentro <strong>da</strong> prisão do que fora. O meu argumento é que isso não se deve ao maior<br />

potencial criminal, mas à maior criminalização do comportamento delinqüencial de negros comparativamente a<br />

brancos. Isso parece muito evidente. Não é um olhar direto que pune os negros, mas sim porque ocorre uma<br />

falta de apoio de direitos. No fundo, é conjunto de falta de proteção social e jurídica que torna o indivíduo mais<br />

vulnerável à sanção penal. Por não poder se defender melhor, ele não t<strong>em</strong> como se defender b<strong>em</strong>. Eu não sei<br />

dizer para você se os negros são punidos na medi<strong>da</strong> certa e os brancos são os privilegiados na punição ou se a<br />

punição correta seria, por ex<strong>em</strong>plo, de 59% e você t<strong>em</strong> 10% de negros punidos acima <strong>da</strong> média. Isso eu não<br />

consegui verificar, seria preciso um outro tipo de controle de pesquisa para poder fazer isso. Mas, de qualquer<br />

maneira, seja uma coisa ou outra, a idéia é de que a distribuição <strong>da</strong> justiça é desigual segundo a cor.<br />

"É preciso termos mais operadores negros no direito, para que os<br />

operadores brancos sintam-se constrangidos ao aplicar<strong>em</strong> suas sentenças<br />

e para que o olhar étnico também seja considerado na justiça"<br />

ComCiência - O que significa essa distribuição desigual de direitos na justiça?<br />

Adorno - Isso significa que a tal universali<strong>da</strong>de dos direitos, inclusive <strong>da</strong> aplicação <strong>da</strong> justiça, está<br />

comprometi<strong>da</strong> na base. Ora, se a cor é um poderoso instrumento de distribuição de sentenças, algo está<br />

errado. Minha pesquisa não permite dizer que isso se deve a um racismo dos operadores <strong>da</strong> justiça. Na<br />

ver<strong>da</strong>de, isso se deve a um conjunto de fatores. Nos processos criminais de negros, por ex<strong>em</strong>plo, foi possível<br />

notar que, no fundo, exist<strong>em</strong> processos muito sutis de desqualificação frente aos direitos e isso é uma coisa<br />

muito evidente e forte. O probl<strong>em</strong>a é esse, como é possível restabelecer esta igual<strong>da</strong>de na sanção, igual<strong>da</strong>de<br />

na distribuição de lei e ord<strong>em</strong>? Eu acho que é preciso termos mais operadores negros no direito, para que os<br />

operadores brancos sintam-se mais constrangidos ao aplicar<strong>em</strong> suas sentenças e para que o olhar étnico<br />

também seja considerado na justiça. Considerado não para beneficiar alguém, mas para garantir a igual<strong>da</strong>de e<br />

para garantir que a cor não influencie a leitura de algum caso, ou que, de alguma forma, interfira numa decisão<br />

judicial.<br />

Atualizado <strong>em</strong> 10/11/03<br />

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