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Texto completo em PDF - Museu da Vida

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poderá ser fabricado pela ciência e oferecido no mercado - até mesmo uma criança - que penso a existência de<br />

uma criança como objeto-mercadoria com valor de fetiche (Roure, 2001).<br />

Com efeito, penso o meca-filho David (Haley Joel Osment) - cópia fiel de uma criança humana programa<strong>da</strong><br />

para servir ao outro "com amor" - como metáfora dessa criança-objeto, presente <strong>em</strong> nosso t<strong>em</strong>po <strong>da</strong>s mais<br />

diversas formas. Vejamos, por ex<strong>em</strong>plo, o caso <strong>da</strong> criança que, ao ser "beneficia<strong>da</strong>" pelo programa bolsa escola<br />

- ou similares - pode vir a adquirir para a família, valor de mercadoria a ser negocia<strong>da</strong>, ou mesmo o <strong>da</strong> criança<br />

que, objeto do querer consciente de uma mulher, torna-se "produto" de uma produção "independente", na qual<br />

o desejo sexual, ao ser excluído do assunto <strong>da</strong> procriação, leva-a a um <strong>em</strong>baralhamento <strong>da</strong> filiação. Vejamos,<br />

ain<strong>da</strong>, o caso <strong>da</strong> pequena prostituta, cuja posição de objeto permite que desejos incestuosos sejam satisfeitos<br />

s<strong>em</strong> nenhum interdito, pois, afinal de contas, a filha é do outro. Essas são situações <strong>em</strong> que, aliena<strong>da</strong>s ao<br />

desejo do outro, crianças são impedi<strong>da</strong>s de se constituir <strong>em</strong> sujeito desejante.<br />

Mas, retorn<strong>em</strong>os à história de David, o pequeno robô, que ao ser ativado para amar, passa a sonhar - como<br />

Pinóquio - <strong>em</strong> se tornar humano para ganhar o amor <strong>da</strong> mãe. O filme encontra-se localizado <strong>em</strong> um t<strong>em</strong>po<br />

futuro indeterminado, <strong>em</strong> que o efeito estufa derreteu a calota polar, matou bilhões de pessoas e afundou<br />

ci<strong>da</strong>des costeiras como Nova Iorque e Amsterdã. Quanto à socie<strong>da</strong>de, esta se divide <strong>em</strong> orgas - os orgânicos -<br />

e os mecas - os mecânicos -, sendo que os primeiros encontram-se sob severa restrição para procriar.<br />

Conforme afirmei anteriormente, na cena inicial do filme t<strong>em</strong>os a exposição do projeto do cientista Robby<br />

(William Hurt) de produzir um meca capaz de amar e sonhar, e nesse sentido, ressalta a criação de um mecafilho<br />

que possa vir a amar seus pais para "todo o s<strong>em</strong>pre". "Amor perverso", penso eu, que não implica "<strong>da</strong>r ao<br />

outro o que não se t<strong>em</strong>" (Lacan, 1960), mas <strong>em</strong> oferecer, justamente, o que se t<strong>em</strong>, isto é, um corpo -<br />

máquina - cujo funcionamento permite ao pai a eternização de um gozo s<strong>em</strong> interdito (Castel, 1997). Nesse<br />

sentido, vale l<strong>em</strong>brar que tal projeto encontra-se atravessado pelo desejo do cientista, perseguido pela morte<br />

do filho, de reencontrá-lo, ain<strong>da</strong> que seja no corpo de uma máquina.<br />

Penso que projetos dessa natureza - efeito de um discurso tecnocientífico - d<strong>em</strong>arcam a existência de um laço<br />

perverso, visto que, "s<strong>em</strong> vontade própria", o meca-filho coloca-se à mercê de seu dono como objeto de um<br />

gozo s<strong>em</strong> fim, pois seu corpo – máquina – não oferece nenhuma resistência aos desejos e fantasias <strong>da</strong>quele<br />

que o possui como proprietário. Gozo garantido por fatura.<br />

Quanto ao casal escolhido para acolher o pequeno meca, Mônica e Henry Swinton (Frances O’Connor e Sam<br />

Robards), penso não ser s<strong>em</strong> sentido o fato de que o filho Martin (Jack Thomas) - vítima de uma doença<br />

terminal - encontra-se congelado pelo método criogênico. Neste momento, pergunto-me sobre a relação<br />

mortífera que o casal mantém com o filho, e cujo pronto restabelecimento só ocorre subitamente com a<br />

chega<strong>da</strong> do meca-filho.<br />

Uma questão que me parece importante na trama do filme é a forma<br />

como David é acionado para "amar". Ou seja, para produzir amor <strong>em</strong><br />

David é preciso que Mônica repita uma lista de sete palavras,<br />

previamente planeja<strong>da</strong>s pela Cybertronics Manufacturing, fábrica<br />

responsável por sua construção. São elas: cirro, Sócrates, partícula,<br />

decibel, furacão, tulipa e golfinho. É logo após a escuta de tais<br />

palavras que David nomeia Mônica mãe. E, é bom l<strong>em</strong>brar, a<br />

nomeação parte de David e não de Mônica. Ora, se a transformação<br />

de um indivíduo <strong>em</strong> sujeito se dá por palavras que o enlaçam a um<br />

mundo simbólico, como fica se a introdução a este mundo ocorre por<br />

meio de palavras que apesar de ser<strong>em</strong> ditas, ou melhor, repeti<strong>da</strong>s<br />

pela mãe, não traz<strong>em</strong> consigo uma linhag<strong>em</strong>, uma história a partir <strong>da</strong><br />

qual ele possa se inscrever?<br />

Tudo parece correr b<strong>em</strong>, até que o filho ver<strong>da</strong>deiro se recupera e<br />

retorna para casa, estabelecendo com David – deslocado de mecafilho<br />

para meca-brinquedo - uma relação de competição pelo amor <strong>da</strong><br />

mãe. Depois de inúmeros incidentes, Mônica decide devolver David à<br />

Cybertronics, o que significa sua imediata destruição. Entretanto,<br />

toma<strong>da</strong> pela dúvi<strong>da</strong> e angustia<strong>da</strong> com sua decisão, opta por<br />

abandoná-lo na floresta com o urso de pelúcia Teddy. Não estranhamente, nesse momento, a história toma um<br />

outro rumo. Se a grande questão, inicialmente destaca<strong>da</strong> pelo cientista, era a capaci<strong>da</strong>de de um meca amar um<br />

orga, agora a situação se inverte: será um humano capaz de amar um meca?<br />

Nesse ponto, pergunto-me sobre o tipo de laço possível de ser instaurado por projetos dessa natureza, pois um<br />

meca-filho - ain<strong>da</strong> que um robô - é programado para "amar" s<strong>em</strong> nenhuma garantia de que possa vir a ser ser<br />

amado. Na ver<strong>da</strong>de, a ressalva que faço não t<strong>em</strong> relação com o fato de David merecer ou não ser amado -<br />

visto que é apenas uma máquina - mas penso sobre o tipo de vínculo estabelecido. De fato, ain<strong>da</strong> que um robô,<br />

David foi, durante algum t<strong>em</strong>po, utilizado pelo outro - especialmente por Mônica - como objeto, na posição de<br />

filho.<br />

133<br />

A mãe, Monica Swinton (Frances<br />

O’Connor), aciona seu meca-fliho, David,<br />

para "amar".

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