Texto completo em PDF - Museu da Vida
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ComCiência - Isso é um fenômeno tipicamente brasileiro?<br />
Adorno - Não. Acho que <strong>em</strong> to<strong>da</strong>s as socie<strong>da</strong>des isso ocorre com muita freqüência. Por ex<strong>em</strong>plo, na França, na<br />
Inglaterra e sobretudo nos EUA, os negros de orig<strong>em</strong> africana são freqüent<strong>em</strong>ente discriminados. O que me<br />
parece diferente é a atitude dos ci<strong>da</strong>dãos e <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>dãs <strong>em</strong> relação a isso. Nos EUA, hoje, esse tipo de<br />
discriminação causa muita indignação. Há o preconceito, mas, de alguma maneira, existe uma indignação. O<br />
que me incomo<strong>da</strong> no Brasil é que esses segmentos indignados são muito pequenos, têm pouco peso para se<br />
expressar publicamente e a maioria <strong>da</strong>s pessoas acha, muitas vezes, que isso é normal ou, se não é normal,<br />
que um dia vai mu<strong>da</strong>r. Enfim, é como se fosse a ord<strong>em</strong> natural <strong>da</strong>s coisas.<br />
ComCiência - Como esse preconceito é refletido no funcionamento <strong>da</strong> justiça?<br />
Adorno - Quando falamos do racismo nas instituições de controle social, particularmente na polícia e nas<br />
instituições de justiça, é preciso levar <strong>em</strong> consideração que esse fenômeno não é específico dessas instituições,<br />
ele é uma expressão <strong>da</strong>quilo que acontece na socie<strong>da</strong>de. Você encontra o racismo no trabalho, nos espaços<br />
públicos, na escola, <strong>em</strong> coisas el<strong>em</strong>entares <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cotidiana. O que acontece é que estamos tratando de uma<br />
instituição de controle social, que tende, de alguma maneira, a distorcer a reali<strong>da</strong>de no sentido <strong>da</strong> polarização<br />
entre o b<strong>em</strong> e o mal, entre o certo e o errado, entre qu<strong>em</strong> obedece e qu<strong>em</strong> não obedece. Então, na justiça, a<br />
questão racial acaba adquirindo uma visibili<strong>da</strong>de que não necessariamente aparece tão visível fora dela.<br />
"O racismo, nas instituições de controle social, particularmente na polícia e<br />
nas instituições de justiça, é uma expressão <strong>da</strong>quilo que acontece na<br />
socie<strong>da</strong>de"<br />
ComCiência - Há quanto t<strong>em</strong>po o senhor li<strong>da</strong> com essas questões <strong>em</strong> suas pesquisas?<br />
Adorno - A questão <strong>da</strong> distribuição <strong>da</strong>s sentenças comparativamente a brancos e negros, ou seja, a punição<br />
legal aplica<strong>da</strong> a brancos e negros, é um t<strong>em</strong>a que me interessou porque, <strong>em</strong> contatos com o movimento negro<br />
e muitas vezes estu<strong>da</strong>ndo diferentes questões sobre a justiça, eu vi que se tratava de uma área de absoluta<br />
evidência de racismo e sobre a qual não existiam estudos nesse sentido. Falava-se que a polícia perseguia mais<br />
o negro, que o negro era mais punido etc. Mas o que era isso na ver<strong>da</strong>de? Foi a partir disso, com o apoio <strong>da</strong><br />
Fun<strong>da</strong>ção Ford, que resolvi fazer uma pesquisa tomando processos penais do estado de São Paulo, no início <strong>da</strong><br />
déca<strong>da</strong> de noventa. Assim, comparei rigorosamente a distribuição de sentenças penais para crimes<br />
rigorosamente idênticos, dentre os quais figuravam o roubo, o tráfico de drogas, o latrocínio, o tráfico<br />
qualificado e o estupro. Eu montei um sist<strong>em</strong>a de controle de maneira que pude dizer que as diferenças de<br />
punição para brancos e negros não se deviam às tipificações penais.<br />
ComCiência - Quais foram os resultados dessa comparação?<br />
Adorno - Ao fazer essa comparação, não pude verificar se, por ex<strong>em</strong>plo, na porta de entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> justiça, os<br />
negros comet<strong>em</strong> mais crimes do que os brancos. Isso é algo difícil de se fazer e envolveria outro tipo de<br />
pesquisa, mas cheguei à conclusão que isso não era muito relevante. Ao fazer essa comparação descobri,<br />
primeiro, que os negros eram proporcionalmente mais condenados do que brancos pelo mesmo crime. Não <strong>em</strong><br />
termos <strong>da</strong> duração <strong>da</strong> pena, que não variava muito. Quer dizer, quando eles eram punidos, as sentenças eram<br />
muito próximas, não havia variações significativas. Mas, por ex<strong>em</strong>plo, 59,4% dos brancos observados foram<br />
condenados e 68,8% dos negros foram condenados. A diferença foi de quase 10%. Outra coisa que eu percebi<br />
foi que os negros dependiam muito mais <strong>da</strong> justiça pública do que os brancos. Os brancos, de um modo geral,<br />
tinham mais condições de ter acesso à defesa particular contrata<strong>da</strong>, sendo que os negros, muito pouco. Era<br />
uma coisa interessante porque o que chamou atenção foi o fato de que, se eu fosse olhar do ponto de vista<br />
sócio-econômico, os brancos e negros que estavam sendo objeto <strong>da</strong> justiça não eram muito diferentes. De<br />
modo geral, os negros tinham uma taxa maior de não ocupados, tinham uma escolari<strong>da</strong>de um pouco mais<br />
baixa, mas na<strong>da</strong> que dissesse que eu estava li<strong>da</strong>ndo com classes sociais, com segmentos de classes,<br />
completamente diferentes.<br />
ComCiência - Nesse caso, se o perfil sócio-econômico de brancos e negros era bastante s<strong>em</strong>elhante,<br />
o que explica essa diferença de acesso à justiça?<br />
Adorno - Aqui eu quero fazer uma nota, porque se trata de um assunto polêmico. Não posso dizer que é a<br />
quali<strong>da</strong>de de defesa de um e de outro, não tenho como avaliar isso. Eu só vi, e a tendência era essa, que com<br />
um bom advogado particular a tendência era a absolvição. Com um advogado do Estado a tendência maior era<br />
a condenação. Eu acho que o probl<strong>em</strong>a não é necessariamente a quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> advocacia, mas talvez tenha a<br />
ver com um caráter mais burocrático dos serviços públicos. Isso me chamou a atenção e era uma coisa que eu<br />
gostaria de ter pesquisado mais profun<strong>da</strong>mente. O que me explicava isso era o fato de que era diferente a<br />
ligação de brancos e negros com o mundo do direito. Provavelmente, o que ocorre com brancos, é que alguém<br />
t<strong>em</strong> um conhecido que é advogado. Os brancos estavam numa malha de relações de direito que não existia<br />
necessariamente para os negros. Os negros dependiam do serviço do Estado, porque eles provavelmente não<br />
tinham essas referências no mundo <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de. Então, o caráter perverso está aí.<br />
ComCiência - Perverso por quê?<br />
Adorno - Porque é aí que está o probl<strong>em</strong>a do acesso diferencial ao direito. Quer dizer, é fato você ter uma vi<strong>da</strong><br />
na qual, de alguma maneira, a proteção legal é mais presente para um e para outro ela é mais ausente.<br />
Ausente não só no sentido de que ela não é freqüente, mas as referências não são aquelas convencionais <strong>da</strong><br />
lei. Eu acho que isso está mu<strong>da</strong>ndo, porque hoje você t<strong>em</strong> mais advogados negros, já exist<strong>em</strong> juízes negros.<br />
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