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Eis o homem a cujo serviço esteve Jão durante algum tempo, não só<br />
pela necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ganhar a subsistência, como pela ânsia <strong>de</strong> saciar<br />
a sanha terrível que o <strong>de</strong>vorava. Fez-se instrumento da perversida<strong>de</strong><br />
do mandão; mas essas vinganças não eram senão brigas e combates,<br />
em que ele barateava sua vida, ansiando pela morte, que se<br />
obstinava em poupa-lo.<br />
Sujeito que fugisse e se amedrontasse, não lhe tocava Jão,<br />
qualquer que fosse a recompensa ou ameaça do amo. Mas também<br />
quando se enfurecia, nada aplacava essa alma calcinada pelo fogo<br />
surdo que lavrava <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a morte <strong>de</strong> Besita.<br />
Referiam-se <strong>de</strong>sse homem as maiores atrocida<strong>de</strong>s; e a alcunha<br />
<strong>de</strong> Jão Fera que lhe tinham dado por esse tempo, bem revelava a<br />
profunda impressão produzida na gente do lugar pelos fatos que ele<br />
praticara. Alguns não se explicavam, a não ser pelo <strong>de</strong>lírio<br />
sanguinário que se apo<strong>de</strong>ra <strong>de</strong> certos homens, e não é talvez senão a<br />
exaltação do hábito levado até a mania.<br />
Chamado, pago e protegido por homens po<strong>de</strong>rosos para<br />
escolta-los em aventuras e servir às suas paixões, o Bugre recebeu a<br />
iniciativa e a animação que iam acostumando seu braço a ferir e a<br />
repousar <strong>de</strong>pois do crime, como se tivesse praticado uma honrosa<br />
façanha, uma valentia digna <strong>de</strong> louvor.<br />
Esta é com pouca diferença a história <strong>de</strong> todos os assassinos<br />
incorrigíveis, que infestam o interior do país. Eles foram educados<br />
pelos po<strong>de</strong>rosos como os dogues que se a<strong>de</strong>stravam antigamente<br />
para a caça humana, dando-lhes a comer, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequenos, carne <strong>de</strong><br />
índio.<br />
Durante o tempo que serviu como capanga a diversos patrões,<br />
não esqueceu Jão os dois pensamentos únicos <strong>de</strong> sua vida, ou antes<br />
único pensamento que se dividira agora em dois cuidados.<br />
Era Besita que lhe <strong>de</strong>ixara em legado, vingar sua morte, e<br />
proteger sua filha.<br />
Não se passava um dia sem tirar Jão inculcas do Ribeiro,<br />
esperando que fizesse o acaso o que não pu<strong>de</strong>ra toda a sua<br />
diligência. Também <strong>de</strong> tempos em tempos vinha às ocultas até Santa<br />
Bárbara para ver Berta; e então sempre lhe trazia algum enfeite e<br />
<strong>de</strong>ixava na mão <strong>de</strong> nhá Tudinha dinheiro para comprar-lhe o<br />
necessário, <strong>de</strong> modo que andasse bem pronta e arranjada.<br />
Berta a princípio não queria saber daquele homem triste e<br />
carrancudo. Quando nhá Tudinha a levava pela mão até o mato, on<strong>de</strong><br />
ele as esperava para não ser visto, a menina tinha medo. Mas a<br />
pouco e pouco foi se habituando, e afinal sentada em seus joelhos<br />
brincava com a faca <strong>de</strong> ponta que lhe tirava da cinta e arrepiava-lhe<br />
a barba ruiva.<br />
Tinha Berta as feições da mãe, e Jão via com enlevos, travados<br />
muitas vezes <strong>de</strong> um terror supersticioso, surgir pouco e pouco do<br />
vulto da menina a imagem rediviva da mulher, a quem adorara como<br />
uma santa, embora tivesse amado também com a fúria <strong>de</strong> um<br />
possesso.<br />
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