Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
no semblante uma ânsia repentina e seus olhos apagavam-se, como<br />
se a enorme cabeça vacilasse.<br />
Nesses momentos <strong>de</strong> obliteração, porém, o doce olhar <strong>de</strong> Berta<br />
sustinha aquele espírito titubeante prestes a submergir-se nas trevas.<br />
Entrelaçando o ru<strong>de</strong> labor da lição com sorrisos e meiguices, que<br />
orvalhavam a alma enferma do mísero idiota, a carinhosa mestra não<br />
só incutia-lhe o ânimo <strong>de</strong> perseverar no insano esforço, como<br />
iluminava com um vislumbre <strong>de</strong> sua alma a <strong>de</strong>nsa caligem daquele<br />
cérebro granítico.<br />
- Esta letra, Brás!... Não se lembra?... Olhe para mim, olhe<br />
bem! O que estou fazendo?...<br />
- Rindo!<br />
- Então que letra é?<br />
- Erre?... dizia o rapaz <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> lenta cogitação.<br />
- Isso mesmo.<br />
Outras vezes, para dirigir o entendimento <strong>de</strong> Brás e <strong>de</strong>spertarlhe<br />
a embotada reminiscência, contava Berta uma história, imitava o<br />
canto <strong>de</strong> um pássaro, ou inventava um brinquedo que suscitasse a<br />
noção esquecida.<br />
Embora já tivesse Brás percorrido quase toda a carta <strong>de</strong> leitura,<br />
<strong>de</strong> súbito, e não obstante esse adiantamento, faziam-se em seu<br />
entendimento profundos eclipses. Dir-se-ia que apagava-se <strong>de</strong> todo o<br />
morno lampejo da inteligência bruta, e que esse crânio vazado em<br />
mol<strong>de</strong> humano <strong>de</strong>scia abaixo <strong>de</strong> uma caveira suína.<br />
Por isso Berta o obrigava a repetir constantemente tudo quanto<br />
já havia aprendido, no intuito <strong>de</strong>, à força <strong>de</strong> hábito, por uma espécie<br />
<strong>de</strong> atrito contínuo, gravar-lhe profundamente no boçal engenho os<br />
rudimentos que tinha ensinado com admirável paciência. Só <strong>de</strong> tal<br />
sorte conseguira ela inserir nessa bruta animalida<strong>de</strong> algumas idéias,<br />
que ali permaneciam como inscrições lapidárias abertas em lousa.<br />
Era Brás filho <strong>de</strong> uma irmã <strong>de</strong> Luís Galvão, a qual falecera três<br />
anos antes, ralada pelos <strong>de</strong>sgostos que lhe <strong>de</strong>ra o marido, e pelo<br />
suplício incessante <strong>de</strong> ver reduzido ao lastimoso estado <strong>de</strong> um san<strong>de</strong>u<br />
o único fruto <strong>de</strong> suas entranhas.<br />
Quando morreu, já era <strong>de</strong> muito viúva a infeliz senhora; e, pois,<br />
com a sua perda, ficou Brás sem outro arrimo, a não ser por Luís<br />
Galvão, seu tio e mais próximo parente, que o trouxe imediatamente<br />
para casa e <strong>de</strong>svelou-se como po<strong>de</strong>, pela sorte da mísera criança.<br />
Compreen<strong>de</strong>-se quanto <strong>de</strong>via custar a D. Ermelinda, ciosa em<br />
extremo da morigeração <strong>de</strong> seus filhos, o receber no íntimo seio da<br />
família um menino até certo ponto estranho, e não só baldo <strong>de</strong> toda a<br />
educação, como incapaz <strong>de</strong> recebê-la. Mas compenetrara-se a digna<br />
senhora que seu marido, recolhendo o sobrinho órfão e servindo-lhe<br />
<strong>de</strong> pai, cumpria um rigoroso <strong>de</strong>ver; e tanto bastou para que não<br />
suscitasse a menor objeção. Resignada ao mal inevitável, socalcou<br />
sua repugnância.<br />
Somente exigiu <strong>de</strong> Luís Galvão, e isso o fez com autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
mãe, que, recebido Brás e tratado como filho da casa, se evitasse<br />
70