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Sentara-se a menina em um pedaço <strong>de</strong> alto pranchão, que aí<br />
tinham colocado para servir <strong>de</strong> banco; e suas mãos sutis e ligeiras<br />
tomavam o ponto às meias, ou serziam e remendavam a outra roupa<br />
lavada, que precisava <strong>de</strong> conserto e enchia o balaio posto a seu lado<br />
na ponta do tabuão.<br />
Adiantando a sua tarefa diária, que pelo hábito já os <strong>de</strong>dos<br />
ágeis faziam às cegas e com uma presteza admirável, escutava com<br />
atenção ao Brás, ajoelhado ao outro lado do balaio, na esteira <strong>de</strong><br />
tábua, que servia <strong>de</strong> tapete, ou antes <strong>de</strong> tabuleiro para a roupa já<br />
consertada, a fim <strong>de</strong> não misturar-se com a outra da cesta.<br />
Com as mãos postas, e um modo sério, repetia o rapaz <strong>de</strong> cor a<br />
Salve-Rainha, sem titubear. Dir-se-ia que estava lendo no formoso<br />
semblante <strong>de</strong> Berta por mágica influição aquelas palavras ignotas, tal<br />
era a fixi<strong>de</strong>z da pupila e a absorção <strong>de</strong> sua alma no hausto <strong>de</strong>sse<br />
olhar.<br />
Era sem dúvida a primeira vez que o Brás dizia certa a oração,<br />
pois no gesto da menina, on<strong>de</strong> vislumbrara uma vaga inquietação,<br />
<strong>de</strong>rramou-se gran<strong>de</strong> contentamento pelo triunfo obtido sobre a<br />
fatalida<strong>de</strong> que enca<strong>de</strong>ava aquele espírito bronco.<br />
- Assim, Brás! disse a gentil mestra <strong>de</strong>sfolhando-se, como uma<br />
bonina, em ledos sorrisos.<br />
- <strong>Til</strong> contente? perguntou timidamente o rapaz, com certa<br />
brandura <strong>de</strong> voz, que <strong>de</strong>svanecia o tom brusco e explosivo.<br />
- Muito!...<br />
E a menina cingiu com o braço esquerdo a cabeça do rapaz e a<br />
estreitou ao seio com efusão. O sentimento <strong>de</strong> bem- aventurança que<br />
difundiu-se pela fisionomia do idiota; o êxtase <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>, no qual<br />
se embeberam suas feições, sempre transtornadas pela imbecilida<strong>de</strong>,<br />
e agora consertadas por um plácido sopitamento; essa elação ao<br />
toque da meiga carícia, não há traços para esboçar.<br />
A transição súbita <strong>de</strong> um informe toro em estátua acabada,<br />
somente po<strong>de</strong> dar uma idéia da transfiguração, que um supremo<br />
gozo havia operado nessa infeliz criatura, cujo vulto <strong>de</strong>scomposto e<br />
mal-amanhado negava muitas vezes a forma humana.<br />
Esteve Berta a espiar-lhe por entre os revoltos cabelos essa<br />
expressão inefável <strong>de</strong> rosto que ela conservava unido ao seio; e <strong>de</strong><br />
seus olhos um tanto amortecidos e brandos naquele instante,<br />
manava uma ternura santa e imensa, na qual ressumbravam<br />
extremos da maternida<strong>de</strong>.<br />
- Agora a Ave-Maria! disse Berta afastando a cabeça do rapaz,<br />
e tornando à anterior posição.<br />
Arrancando ao enlevo, como um galho <strong>de</strong>cepado que rola ao<br />
chão, ou como a lasca do penedo que se alteava no píncaro do<br />
alcantil e vai sumir-se no abismo, sentiu o idiota romper-se-lhe o<br />
coração e estalar com dores cruas e dilacerantes. Era a alma<br />
arremessada do céu ao báratro.<br />
Foi muda porém essa angústia, que afundou-se pelo íntimo, nos<br />
recessos insondáveis <strong>de</strong>ssa consciência vedada ao mundo; e não<br />
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