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Til – José de Alencar

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Logo, porém, reconheceu que era uma criança, <strong>de</strong> pouco mais<br />

<strong>de</strong> um ano. Apesar do natural pacato do rocim causava espanto que o<br />

pequerrucho se pu<strong>de</strong>sse conservar em cima <strong>de</strong>le, escanchado na<br />

cernelha e agarrado às crinas.<br />

- Que quer você, pirralho? perguntou o velho Galvão.<br />

Volveu a criança para o fazen<strong>de</strong>iro uns olhos negros como<br />

carbúnculos, e ficou a mira-lo com o ingênuo pasmo da infância.<br />

Como se verificou <strong>de</strong>pois, o menino não falava ainda, talvez por ser<br />

tar<strong>de</strong> nele o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>ssa faculda<strong>de</strong>.<br />

Nunca se po<strong>de</strong> saber don<strong>de</strong> saíra aquela criança; como chegara<br />

até o terreiro sem darem por ela; se viera só ou alguém a trouxera.<br />

Também foram inúteis as pesquisas que se fizeram para <strong>de</strong>scobrir os<br />

pais, ou ao menos algum indício <strong>de</strong> quem po<strong>de</strong>riam ser.<br />

Como <strong>de</strong> costume, apareceram várias conjeturas e invenções,<br />

cada qual mais engenhosa. Uma velha, muito versada no Novo<br />

Testamento, afirmou que esse menino era o Anticristo e o sen<strong>de</strong>iro a<br />

própria besta do Apocalipse, <strong>de</strong>scrita por São João. Outra jurava ser o<br />

caçula do diabo cocho que se metera na pele do bugrezinho, e<br />

andava fazendo estrepolias pelo mundo.<br />

À parte essas e outras caraminholas <strong>de</strong> que os visionários<br />

encheram a cabeça da gente ignorante, correu entre as pessoas<br />

sisudas uma versão, que ninguém soube don<strong>de</strong> proveio, e<br />

naturalmente formou-se <strong>de</strong> uma misteriosa agregação <strong>de</strong><br />

circunstâncias, como suce<strong>de</strong> sempre às rapsódias populares.<br />

Houvera gran<strong>de</strong> cheia no rio. Uma família <strong>de</strong> gente pobre ia<br />

passar o vau, que faltou-lhes. A mulher sumiu-se, o marido correu a<br />

salva-la, <strong>de</strong>sapareceram ambos arrebatados pela correnteza, ou<br />

tragados por algum perau. Então o sen<strong>de</strong>iro, que levava o menino, e<br />

cujo cabresto soltara o infeliz pai no impulso <strong>de</strong> salvar a<br />

companheira, recuou, e seguindo pela margem foi ter à fazenda. A<br />

tronqueira estava aberta naturalmente; e assim po<strong>de</strong> chegar ao<br />

terreiro, on<strong>de</strong> o <strong>de</strong>scobriram.<br />

Era essa a verda<strong>de</strong> ou mera suposição? Ninguém tinha<br />

presenciado o sinistro, nem sabia-se em toda a vizinhança, <strong>de</strong> gente<br />

que houvesse <strong>de</strong>saparecido. Mas todos afirmavam o fato, que era<br />

aceito como ponto <strong>de</strong> fé.<br />

Foi o bugrezinho batizado com o nome <strong>de</strong> João, sendo o<br />

padrinho o Afonso Galvão. As velhas que sustentavam haver partes<br />

do diabo no pequeno, não se <strong>de</strong>ram por vencidas; e asseguravam<br />

que, durante o sacramento, o manhoso do inimigo para livrar-se da<br />

estola e d’água benta, saltara mais que <strong>de</strong>pressa e se escon<strong>de</strong>ra na<br />

pança do velho fazen<strong>de</strong>iro.<br />

Tornou-se Jão o companheiro <strong>de</strong> brinquedos <strong>de</strong> Luís; e <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

logo mostrou a têmpera do caráter que só mais tar<strong>de</strong> se havia <strong>de</strong><br />

formar. Já em criança era robusto, valente, mas taciturno e sombrio;<br />

quando a molecada, que fazia roda ao senhor moço, o inquizilava, a<br />

ele Jão, ia-os sovando em regra, apesar <strong>de</strong> serem muitos e mais<br />

velhos.<br />

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