16.06.2013 Views

Til – José de Alencar

Til – José de Alencar

Til – José de Alencar

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

- Coitado do cotó! Ainda está muito magricela?... disse a<br />

menina com um carinho compassivo.<br />

E tirou do saco meia dúzia <strong>de</strong> espigas <strong>de</strong> milho, que o animal<br />

<strong>de</strong>vorou com uma gana <strong>de</strong> convalescência.<br />

Debulhado o último sabugo, farejou o burro o saco, don<strong>de</strong> se<br />

escapavam umas exalações que lhe pruiam agradavelmente o olfato.<br />

Rindo, outra vez meteu Berta a mão no seu inesgotável saco e<br />

trouxe um punhado <strong>de</strong> farinha que o burro lambeu-lhe das palmas.<br />

Dando então um ligeiro tapa na belfa do animal, <strong>de</strong>itou a correr pelo<br />

campo fora seguindo a mesma vereda.<br />

Atrás <strong>de</strong> um fraguedo, cuja fralda atravessava o leito do rio,<br />

abrolhando-lhe a corrente, existia naquele tempo uma casa em ruína.<br />

Já tinha <strong>de</strong>sabado meta<strong>de</strong> da pare<strong>de</strong> do sótão e o telhado abatia aos<br />

poucos, rompendo os caibros podres.<br />

Da cozinha, que ainda se conservava em bom estado, com<br />

exceção da porta já tombada ao chão pela ferrugem das dobradiças,<br />

saía um som roufenho e soturno, como o grunhido <strong>de</strong> um porco.<br />

Acocorada a um canto, com o queixo sobre os cotovelos fincados ao<br />

peito cerrando a cara, <strong>de</strong>scobria-se uma criatura humana, dobrada<br />

sobre si a modo <strong>de</strong> trouxa.<br />

Era uma preta velha, coberta apenas <strong>de</strong> uma tanga <strong>de</strong><br />

andrajos, e que resmoneava, batendo a cabeça com um movimento<br />

oscilatório semelhante ao do calangro. De tempo em tempo<br />

<strong>de</strong>sdobrava um dos braços <strong>de</strong>scarnados, insinuava ligeiramente a<br />

mão pela espádua, e fazia menção <strong>de</strong> matar uma pulga que<br />

imaginava ter presa entre o polegar e o indicador.<br />

Havia algum tempo já que Berta parara à porta da cozinha, sem<br />

que a estranha criatura <strong>de</strong>sse o menor sinal <strong>de</strong> a ter percebido.<br />

- Zana! disse afinal a menina.<br />

Estremeceu a negra, e pôs-se a escuta daquela voz, como se<br />

viesse <strong>de</strong> longe, <strong>de</strong> bem longe, e só mui <strong>de</strong> leve lhe ferisse as ouças.<br />

Não se repetindo o chamado, voltou à primeira posição e continuou a<br />

resmonear, abanar a cabeça coberta <strong>de</strong> uma carapinha grisalha da<br />

cor <strong>de</strong> lã churra do carneiro.<br />

Entretanto Berta aproximou-se <strong>de</strong> uma prateleira que havia na<br />

pare<strong>de</strong>, junto ao fogão, para esvaziar ali o resto do saco. No velho<br />

alguidar esborcinado, <strong>de</strong>itou a farinha <strong>de</strong> milho; e sobre a tábua<br />

algum feijão e torresmos <strong>de</strong> carne <strong>de</strong> porco, embrulhados em folhas<br />

<strong>de</strong> couves.<br />

Recostando-se então à aba da prateleira, a menina com os<br />

olhos fitos na preta começou em um tom brando e suavíssimo a<br />

repetir este acalanto:<br />

Cala a boca, anda, nhazinha,<br />

Ai-huê, lê-lê!<br />

Senão olha, canhambola,<br />

Ai-huê, lê-lê!<br />

Vem cá mesmo, Pai Zumbi,<br />

Toma, papanha Bebê!<br />

48

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!