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do saco. Farta a galinha da sua pitança, levou-a Berta à bica, para<br />
matar-lhe a se<strong>de</strong> e lavar-lhe as penas sujas <strong>de</strong> poeira e cisco.<br />
Depois que assim <strong>de</strong>svelou-se em pensar a pobre ave, dandolhe<br />
nutrição e asseio, a menina <strong>de</strong>itou numa palhoça, que a seu rogo<br />
fizera Miguel num canto do cercado, para abrigo <strong>de</strong> sua protegida.<br />
Nos gestos <strong>de</strong> Berta, durante esses cuidados, já não se notava<br />
a travessa alacrida<strong>de</strong> que cintilava <strong>de</strong> ordinário em seus movimentos;<br />
e era, po<strong>de</strong>-se bem dizer, a radiação <strong>de</strong> seu gênio. Sua graça então<br />
era séria; havia em seu lindo semblante uma serena efusão da<br />
ternura que fluía-lhe dos olhos meio vendados e dos lábios<br />
<strong>de</strong>scerrados por um riso gentil.<br />
Bem se conhecia, ao vê-la embebida naquela ocupação, que<br />
não havia aí para ela unicamente o atrativo <strong>de</strong> uma afeição <strong>de</strong><br />
criança, como todos na meninice sentimos, uns pelas bonecas, outros<br />
pelos cães ou passarinhos. Impulso mais forte era o que movia o<br />
coração <strong>de</strong> Berta para aquele mísero ente, como para todo o<br />
infortúnio que encontrava em seu caminho.<br />
Ninguém na casa se importava com essa galinha, a não ser<br />
para fazer-lhe mal. Antes <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r os pés, por ser feia e arisca<br />
perseguiam-na a pedradas, quando aparecia no quintal. Depois que a<br />
roeu a ratazana, esteve ameaçada da panela, don<strong>de</strong> a salvou Berta,<br />
que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> esse dia a tomou a seu cuidado.<br />
Daí em diante, não houve mais quem bolisse com a sura;<br />
porque sabiam que não o sofreria sua linda protetora. E como todos<br />
queriam a Berta <strong>de</strong> coração, o ponto era mostrar ela predileção por<br />
alguma pessoa, ou mesmo objeto, que porfiavam por lhe adivinharem<br />
os pensamentos.<br />
Tendo acomodado a galinha na sua capoeira coberta <strong>de</strong> palhas<br />
e mudado a água do caco, a menina que <strong>de</strong>rramara pelo chão um<br />
punhado <strong>de</strong> milho e couve, entreteve-se alguns instantes a ver suas<br />
flores, umas já <strong>de</strong> véspera abertas, outras botão como ela, esperando<br />
o primeiro raio <strong>de</strong> sol para <strong>de</strong>sabrocham.<br />
Entre eles, colheu um <strong>de</strong> rosa que entrelaçou nos cabelos; e<br />
<strong>de</strong>ixando o quintal, sem <strong>de</strong>morar-se com as outras galinhas que a<br />
cercavam cacarejando, e às quais atirou <strong>de</strong> passagem o resto do<br />
milho, ganhou o campo.<br />
Estendia-se este com pequenas ondulações até a margem do<br />
rio, que ficava a umas cem braças da casa. Entre as pitas e crautás,<br />
que formavam touças aqui e ali, em torno <strong>de</strong> algum arvoredo,<br />
serpejavam trilhos, cruzando-se em várias direções.<br />
Seguiu Berta por aquele que estendia-se na direção do rio. Não<br />
tinha, porém, dado vinte passos, que voltou-se rapidamente, ouvindo<br />
rumor da porta da varanda que outra vez se abria.<br />
Por entre a folhagem e através da neblina viu ela o vulto <strong>de</strong><br />
Miguel, que parara no quintal, volvendo o rosto <strong>de</strong> um a outro lado,<br />
como in<strong>de</strong>ciso no rumo que <strong>de</strong>via tomar. Adivinhou logo a menina<br />
que o rapaz lhe percebera a saída e vinha disposto a acompanhá-la.<br />
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