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Ocultou-se então em uma das touceiras, que embastiam as<br />
cortinas <strong>de</strong> erva-<strong>de</strong>-passarinho, pen<strong>de</strong>ntes das ramas <strong>de</strong> uma velha<br />
laranjeira do mato. Daí observou Miguel, o qual <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> vagar um<br />
instante perplexo pelo campo, meteu-se pela vereda paralela ao rio,<br />
e pouco <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>sapareceu por <strong>de</strong>trás <strong>de</strong> uma ponta <strong>de</strong> capoeira.<br />
Continuou então Berta o seu caminho; mas receosa <strong>de</strong> que o<br />
rapaz a estivesse espreitando ou voltasse <strong>de</strong> repente, ora avançava<br />
trêmula <strong>de</strong> susto, hesitando a cada passo e <strong>de</strong> chofre escon<strong>de</strong>ndo-se<br />
atrás das árvores, ora disparava a correr para encobrir-se no mato<br />
que bordava o sopé da colina.<br />
XVII<br />
Zana<br />
Ao passar pela garganta <strong>de</strong> dois outeiros pedregosos, que<br />
formavam abraçando-se uma estreita e úmida charneca, Berta bateu<br />
com força as palmas das mãos breves e <strong>de</strong>licadas.<br />
Ouvia-se <strong>de</strong> perto um ornejo soturno, que mais parecia<br />
gemido; e logo <strong>de</strong>pois surdiu <strong>de</strong>ntre o maciço da folhagem a enorme<br />
orelha <strong>de</strong> um burro, que a muito custo movia o passo trôpego. De<br />
magreza extrema, ressaltavam os ossos a modo que pareciam<br />
prestes a furar-lhe o couro. Era propriamente uma carcaça, coberta<br />
com espessa crosta <strong>de</strong> lama, on<strong>de</strong> o animal estivera <strong>de</strong>itado e lhe<br />
secara no pelo.<br />
A outra orelha, que aparecia, a per<strong>de</strong>ra ele na mesma ocasião<br />
em que <strong>de</strong> uma foiçada lhe vazaram o olho esquerdo, levando-lhe<br />
boa parte da cabeça. Parece que o arteiro do burro conseguira furar a<br />
cerca da roça <strong>de</strong> um caipira, e regalava-se <strong>de</strong> milho ver<strong>de</strong> e tenra<br />
fava. Mas saiu-lhe cara a gulodice.<br />
No mísero estado em que o pusera o caipira, po<strong>de</strong>, arrastandose,<br />
chegar àquela charneca, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>itou, quase moribundo, em<br />
um brejal. Com pouco os urubus vieram pousar nas ramas da<br />
imbaúba.<br />
Acaso passou Berta pelo caminho e ouvindo gemidos, foi guiada<br />
pelos abutres, dar com o animal agonizante no meio <strong>de</strong> uma touça <strong>de</strong><br />
junça. Movida <strong>de</strong> compaixão, venceu a natural repugnância que lhe<br />
<strong>de</strong>via causar o aspecto da ferida para lavá-la e cobrir com folhas <strong>de</strong><br />
fumo atadas por embira.<br />
Do fumo sempre ouvira falar como remédio para todos os<br />
achaques. Se não servisse para ferimentos, em todo o caso guardava<br />
o talho contra as moscas e tavões.<br />
Repetiram-se estes cuidados, até que afinal começou a ferida a<br />
cicatrizar; mas <strong>de</strong>ixara o burro em tal lazeira, que ainda era duvidoso<br />
se escaparia. Não <strong>de</strong>sanimou Berta, em cuja alma se produziam na<br />
maior efervescência os transportes <strong>de</strong>ssas abnegações veementes,<br />
que são para certas naturezas uma necessida<strong>de</strong> irresistível <strong>de</strong><br />
expansão.<br />
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