Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
- Sangue <strong>de</strong> gente, ou sangue <strong>de</strong> onça, todo é um; tem a<br />
mesma cor, e a mesma malda<strong>de</strong>. Já estou acostumado com ele.<br />
Sente-se a fumaça do churrasco. Eu gosto! Disse o sicário dilatando<br />
as narinas, como se esquisito aroma lhe prurisse o olfato.<br />
- Tu és um monstro! disse Berta afinal com uma explosão <strong>de</strong><br />
horror. Quando te pintavam como um assassino, autor dos maiores<br />
crimes e capaz <strong>de</strong> cometer toda a espécie <strong>de</strong> atrocida<strong>de</strong>, eu não<br />
queria crer; porque duvidava que um homem pu<strong>de</strong>sse transformar-se<br />
em um tigre carniceiro; e também porque tantas vezes te vi tão<br />
sossegado e cuidados comigo, e eu não podia imaginar que se<br />
pu<strong>de</strong>sse ter esse rosto bom e tranqüilo, tendo-se <strong>de</strong>ntro do coração<br />
uma caninana.<br />
A estas últimas palavras, em que a voz da menina sombrearase<br />
com uma entonação afetuosa, o corpo robusto do capanga oscilou<br />
com íntima e rija vibração, como o prócero ibiratã quando a seiva<br />
exuberante irrompe lascando-lhe o tronco. Na expansão violenta <strong>de</strong><br />
sua alma, arrojava-se ele aos pés <strong>de</strong> Berta e ia cair-lhe <strong>de</strong> joelhos,<br />
quando um olhar embaciado e glacial o reteve ofegante e esmagado:<br />
- Agora creio em tudo no que me disseram, e no que se po<strong>de</strong><br />
imaginar <strong>de</strong> mais horrível. Que assassines por paga a quem não te<br />
fez mal, que por vingança pratiques cruelda<strong>de</strong>s que espantam, eu<br />
concebo; és como a suçuarana, que às vezes mata para estancar a<br />
se<strong>de</strong>, e outras por <strong>de</strong>sfastio entra na mangueira e estraçalha tudo.<br />
Mas que te vendas para assassinar o filho <strong>de</strong> teu benfeitor, daquele<br />
em cuja casa foste criado, o homem <strong>de</strong> quem recebeste o sustento;<br />
eis o que não se compreen<strong>de</strong>; porque até as feras lembram-se do<br />
benefício que se lhes fez, e tem um faro para conhecerem o amigo<br />
que as salvou.<br />
- Também eu tenho, pois aprendi com elas; respon<strong>de</strong>u o bugre;<br />
e sei me sacrificar por aqueles que me querem. Não me torno,<br />
porém, escravo <strong>de</strong> um homem, que nasceu rico, por causa das sobras<br />
que me atirava, como atiraria a qualquer outro, ou a seu negro. Não<br />
foi por mim que ele fez isso; mas para mostrar ou por vergonha <strong>de</strong><br />
enxotar <strong>de</strong> sua casa a um pobre diabo. A terra nos dá <strong>de</strong> comer a<br />
todos e ninguém se morre por ela.<br />
- Para ti, portanto, não há gratidão?<br />
- Não sei o que é; <strong>de</strong>mais, Galvão já pôs-me quites <strong>de</strong>ssa<br />
dívida da farinha que lhe comi. Estamos <strong>de</strong> contas justas!<br />
Acrescentou Jão Fera com um suspiro profundo. Assim não era por<br />
ele que eu o queria poupar; mas por outra pessoa.<br />
O capanga quis fitar na menina a pupila ar<strong>de</strong>nte; mas não teve<br />
forças <strong>de</strong> erguer o olhar, que pesava-lhe como uma trave e abatia-se<br />
no chão:<br />
- Foi por mecê, disse a voz submissa.<br />
- Por mim? Por mim; e entretanto estavas aqui; e ias matá-lo?<br />
- Quando ajustei, não sabia e gastei o dinheiro. Agora não<br />
tenho para restituir...<br />
- Pois eu não quero, ouves, não quero que lhe toques!<br />
43