16.06.2013 Views

Til – José de Alencar

Til – José de Alencar

Til – José de Alencar

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Ainda assim não resistia <strong>de</strong> todo àquela po<strong>de</strong>rosa atração. Com o<br />

pescoço distendido, a cabeça lançada à frente, mostrava a ânsia <strong>de</strong><br />

arrastar-se para vencer a distância que a separava da cascavel.<br />

O <strong>de</strong>smaio da moça fora a princípio cheio <strong>de</strong> indizível angústia;<br />

apo<strong>de</strong>rou-se <strong>de</strong>la um incompreensível pavor; queria fugir, e sentia-se<br />

elada a si mesma como a um poste <strong>de</strong> dor. Dir-se-ia que duas forças<br />

divergentes, duas naturezas em reação, lutavam <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> sua alma<br />

e a dilaceravam, disputando-lhe o ser, como aves <strong>de</strong> rapina que<br />

brigam pelo cibo.<br />

Uma <strong>de</strong>ssas naturezas abatia-lhe a fronte, que a outra porfiava em<br />

manter excelsa; e estorcia-lhe o corpo feito para a estatura nobre e<br />

senhoril. Umas vezes, presa da estranha vertigem, via-se em pé,<br />

diante <strong>de</strong> si mesma, imperiosa e cheia <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdém, a esmagar sua<br />

própria cabeça. Outras vezes transformada em vípera, eleva-se pelo<br />

colo da menina gentil, que ela era, e conchegava-se ao tépido calor<br />

<strong>de</strong> um seio virgem.<br />

Afinal, com um movimento hirto esten<strong>de</strong>u Berta o braço direito para<br />

a cascavel, aberta a mão e crispados os <strong>de</strong>dos, no ímpeto <strong>de</strong> tocar o<br />

rosto do réptil, ao qual tornou-se mais viva a trepidação do olhar.<br />

Confrangendo-se, a boicininga propulsou <strong>de</strong> leve a cabeça, como se<br />

arrastara um fio invisível, e foi lentamente rojando para Berta. Nesse<br />

instante havia Afonso enxergado o réptil; e se precipitara horrorizado<br />

para <strong>de</strong>spedaçar a porta,<br />

Entretanto Berta, à proporção que avançava para ela a boicininga, iase<br />

retraindo; erigia-se o busto, e ressurgia-lhe n’alma essa elação<br />

que a <strong>de</strong>sfere ao céu e que imprime na criatura humana a majesta<strong>de</strong><br />

do porte. Assumia a menina outra vez a fina têmpera <strong>de</strong> seu caráter<br />

altivo e inflexível.<br />

Quando a cabeça da cascavel roçou-lhe a ponta dos <strong>de</strong>dos, um<br />

choque íntimo percutiu-lhe o corpo, e estorceu o toro da serpente.<br />

Mas passou instantaneamente; o réptil elando-se pelo braço mimoso,<br />

veio cingir-lhe as espáduas, formando colar.<br />

Com o toque <strong>de</strong>sse brando serpear sentiu Berta a doçura <strong>de</strong> uma<br />

carícia; a boicininga titilava <strong>de</strong> volúpia ao tépido calor da cútis<br />

acetinada; e escon<strong>de</strong>ndo a monstruosa cabeça na conchinha da mão<br />

que a menina recolhera ao seio, caiu no letargo.<br />

IX<br />

Transe<br />

109

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!