16.06.2013 Views

Til – José de Alencar

Til – José de Alencar

Til – José de Alencar

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

XXVI<br />

O abecê<br />

Em uma das escapulas que fez o Brás da escola, suce<strong>de</strong>u<br />

encontrá-lo Berta, acocorado, a soprar as palmas inchadas e<br />

rosnando contra o Domingão, a quem ameaçava <strong>de</strong> longe com<br />

murros ao vento.<br />

Consolou-o ela e o levou consigo até a casa para <strong>de</strong>itar-lhe<br />

panos <strong>de</strong> aguar<strong>de</strong>nte nas mãos e distraí-lo da exasperação em que o<br />

via.<br />

De todas as pessoas que Brás encontrara nas Palmas, fora<br />

Berta a única <strong>de</strong> quem não o afastara o seu natural bravio, nem a<br />

aversão instintiva que lhe inspirava toda criatura humana com quem<br />

se achasse em contato. A gratidão, que logo mostrara pelo modo<br />

compassivo e meigo da menina, redobrou com aquele inci<strong>de</strong>nte.<br />

Quis Berta, para livrar o pobre rapaz dos bolos e repelões do<br />

mestre, ensinar-lhe todas as manhãs a lição; e nesse <strong>de</strong>sígnio<br />

preparou-lhe uma carta. Continuaram as cenas da escola; e<br />

repetiram-se as visagens e gaifonas à vista do til; porém <strong>de</strong>sta vez<br />

em maior escala, pela liberda<strong>de</strong> em que estava o parvalhão do rapaz.<br />

No seu afã <strong>de</strong> imitar o sinal, que tanto lhe <strong>de</strong>ra no goto, virava<br />

cambalhotas e corcoveava pela grama.<br />

Trabalhava a enjeitadinha com toda a meiguice para aplicar às<br />

letras o boto engenho daquele órfão, ainda mais que ela<br />

<strong>de</strong>samparado da fortuna. Vão esforço, em que, não obstante,<br />

porfiava com uma perseverança incrível naqueles tenros anos e em<br />

tão humil<strong>de</strong> condição.<br />

De seu lado também não <strong>de</strong>scoroçoava o Domingão <strong>de</strong> meter o<br />

abecê nos cascos do Brás, ainda que para isso fosse necessário abrilos<br />

<strong>de</strong> meio a meio:<br />

- Burro! gritava ele com uma voz <strong>de</strong> trompa, esgrimindo a<br />

férula. Ou te racho o quengo com este bodoque, ou pões em achas o<br />

guarantã!...<br />

Afinal teve Berta uma inspiração. Desenganada <strong>de</strong> obter que o<br />

menino pronunciasse ao menos o a, <strong>de</strong>ixou-o lançar-se aos<br />

costumados esgares e gambitos. Observando então o pobre san<strong>de</strong>u<br />

com um dó profundo, pensava ela que Deus, em sua infinita<br />

misericórdia, concedia a essa alma tão atribulada e sempre<br />

confrangida por terrível angústia, um breve instante <strong>de</strong> alegria.<br />

Nisso o Brás pulando como um boneco <strong>de</strong> engonço, passava a<br />

ponta do <strong>de</strong>do mui <strong>de</strong> leve pelas sobrancelhas negras <strong>de</strong> Berta, por<br />

seus lábios finos, pela conchinha mimosa da orelha; e, apontando<br />

alternadamente para o til na carta do abecê, repinicava as risadas e<br />

os corcovos.<br />

Iluminou-se <strong>de</strong> súbito o coração <strong>de</strong> Berta. A impressão<br />

estranhas que no idiota produzira aquele insignificante objeto, e cuja<br />

causa escapava à sua compreensão, não era a trepidação <strong>de</strong> um raio,<br />

72

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!