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O trato<br />
O tal Gonçalo era um valentão; e tinha-se na conta do mais<br />
façanhudo espoleta <strong>de</strong> toda aquela redon<strong>de</strong>za.<br />
Não acreditava, porém, a gente do lugar nas proezas <strong>de</strong><br />
arromba que blasonava o pábulo, nem tomava ao sério as roncas e<br />
bravatas com que andava sempre a azoinar aos mais.<br />
Para dar à sua peça um tom ameaçador e ao mesmo tempo<br />
disfarçar o senão do rosto, engendrara o Gonçalo sagazmente o<br />
apelido <strong>de</strong> Suçuarana, que a todo instante atirava à barba dos outros,<br />
mostrando as pampas da cara.<br />
Mas à exceção <strong>de</strong>le, ou <strong>de</strong> algum súcio que lhe filava a pinga,<br />
ninguém o chamava pelo tal apelido senão pela alcunha <strong>de</strong> Pinta, que<br />
lhe tinham posto para o distinguir <strong>de</strong> outro Gonçalo carafuz, também<br />
morador no lugar.<br />
Não aturava, porém, o valentão esse <strong>de</strong>saforo; e disparatava<br />
com quem o tratasse pela alcunha. Para não se meter em rixas,<br />
evitava a gente <strong>de</strong> o chamar daquele modo na presença, ainda que<br />
muitas vezes pelo costume lá escapava a palavra; mas o Gonçalo<br />
fingia não ouvir. Também, segundo contavam, já por vezes lhe<br />
tinham chimpado com o Pinta <strong>de</strong> propósito e mesmo na bochecha,<br />
sem que ele respingasse.<br />
Todavia o que mais amofinava o Gonçalo era a fama <strong>de</strong> Jão<br />
Fera, <strong>de</strong> quem invejava não só a força e valentia, como o apelido,<br />
que lhe granjeara sua malva<strong>de</strong>za, o terror que inspirava aquele<br />
nome, e até as mortes <strong>de</strong> que acusavam o outro, eram para ele<br />
façanhas <strong>de</strong> estrondo.<br />
Chegava o zelo do valentão a ponto <strong>de</strong> consumir-se quando<br />
ouvia mencionar o Bugre como o maior criminoso <strong>de</strong> toda a província<br />
<strong>de</strong> São Paulo. Muitas vezes em seu <strong>de</strong>speito encavacou seriamente; e<br />
andava pelas vendas e ranchos com a canseira <strong>de</strong> provar que ele,<br />
Gonçalo Suçuarana, merecia cem vezes mais a forca do que Jão; pois<br />
as perversida<strong>de</strong>s cometidas por este eram travessuras <strong>de</strong> criança<br />
comparadas com os seus espalhafatos.<br />
O sub<strong>de</strong>legado sabia disso e fazia como o juiz <strong>de</strong> paz, a quem a<br />
lei o substituíra. Deixava bem <strong>de</strong>scansado <strong>de</strong> seu o Gonçalo Pinta,<br />
que assim podia a salvo gabar-se <strong>de</strong> ser um fama sem segundo na<br />
arte <strong>de</strong> matar gente.<br />
Todavia enquanto vivesse Jão Fera, sabia o valentão que o<br />
nome <strong>de</strong>ste havia sempre <strong>de</strong> ser o mais falado e temido <strong>de</strong> toda<br />
aquela redon<strong>de</strong>za, e por isso o tinha em gran<strong>de</strong> ojeriza, apesar do<br />
serviço, que lhe prestara o Bugre, havia anos, livrando-o <strong>de</strong> um<br />
recruta que o levava preso.<br />
Já ele teria dado cabo do rival, se pu<strong>de</strong>sse, mas como não se<br />
atrevesse a atacá-lo <strong>de</strong> frente, espreitava ocasião <strong>de</strong> atirar-lhe o bote<br />
certeiro, e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito rondava disfarçadamente pela venda do Chico<br />
Tinguá, que suspeitavam <strong>de</strong> ser o inculca e espia do capanga<br />
foragido.<br />
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