“De quem é a responsabilidade do cuidado?” O papel das mulheres no processo dedesinstitucionalização da pessoa em sofrimento psíquico.responsabilizar-se pela mãe, já que o pai tambémnão mais conseguia sustentar o quadro psiquiátrico deOdete. Era Ruth quem cuidava das responsabilidades damãe quando esta era internada; aos cinco anos, já ia aobanco efetuar pagamentos. E, assim, cresceu, assumindoa responsabilidade da organização da casa. Coube a ela,diversas vezes, organizar a vida financeira da mãe, já quea mesma, em várias ocasiões, embaraçava-se pela sucessãode crises psíquicas. Nos momentos em que se sentiasenhora de si, encontrava organizada a vida. Era Odetequem cuidava de Ruth e de sua outra filha, exercendo seupapel de cuidadora e de mãe, papel de que se orgulhavae a fazia feliz. Entretanto, quando tomada pelas crises, eraRuth quem exercia o papel de cuidadora, quem tentava cuidardela, tendo, muitas vezes, na sua infância e adolescência,que internar Odete para que fosse cuidada, já que a mãe senegava a submeter-se a tratamento e cuidado. Diversas vezes,Ruth teve que contar com o auxílio do corpo de bombeiros e/ouda polícia para poder levar a mãe para internação, já que nãodispunha do auxilio de mais ninguém, e Odete negava-se a irpara o hospital. Situações complicadas como essa se repetiramem várias ocasiões. Apenas uma vez, houve um suporte paraOdete de um psicólogo, profissional de referência no HospitalManfredini, o que não durou muito tempo, vendo-se a família sozinhacom esse cuidado. Assim sendo, durante 26 anos da vida deRuth, não houve nenhum acompanhamento familiar por parte dosserviços de saúde mental para Odete, ficando o cuidado à mercê,inúmeras vezes, da criança de outrora, agora uma jovem mulher.Tais circunstâncias só começam a alterar-se a partir do momentoem que Ruth ingressa na universidade e inicia o estágio. O primeirofoi na antiga Colônia Juliano Moreira, onde passara quase a vidainteira, vivenciando as internações de sua mãe; esse vai ser no iníciode sua carreira profissional e, nesse mesmo lugar, enxergará a loucurade outra forma. Então, aprofunda-se em estudos acerca da loucura,compreendendo o que ela e sua identidade social, incorporando aquestão do transtorno mental, tanto em sua luta ideológica, como nasua carreira acadêmica e na sua militância. Ruth, nessa experiência,encontrará saídas para o cuidado de sua mãe, que, aos poucos, iniciaseu tratamento ambulatorial, não passando mais por internações. Numanova construção da rede familiar, todos os seus membros se conscientizamda necessidade do tratamento com medicação; isso se faz e fortalece ocuidado com Odete.Odete deixa de ser cuidadora por ser louca? Nesse caso, a loucuraa distancia, por períodos de sua vida, para oferecer cuidado à suas filhasainda crianças. Embora para tentar manter uma organização familiar,a filha mais velha vá procurar assumir, nas fases em que essa mãe fica“ausente”, pelas crises, das responsabilidades maternas.117
Rachel Gouveia PassosE sempre que retorna das internações, a mãeassume seu papel de cuidadora, e a filha volta a seupapel de filha a ser cuidada. Como o anseio pelo cuidadofez com que esta família se reorganizasse, a fimde delegar a cada membro o desvelo que fosse possível?Isso se deu assim porque, talvez, fosse a única alternativade sobrevivência grupal. E, dando-se dessa forma,talvez já não houvesse outra maneira. Nessa experiência,a filha mais nova era quem cuidava da casa, enquantoa mais velha organizava as responsabilidades de rua damãe, no período das internações, traduzindo que essa delegaçãode cuidados efetivava a maternidade transferida,modo de cobrir a deficiência dessas estruturas assistenciais(Costa, 2002:206). O caso de Ruth traduz uma regularidadede práticas sociais de longa duração histórica. As ações dedesinstitucionalização têm recriado a tradição dos cuidadosfemininos, e são muitos os exemplos existentes no país.Por tudo isso, reafirmo que a rede de saúde mental temdeixado muito a desejar, quando fixa responsabilidades parafamílias e, principalmente, para mulheres, por vezes ainda crianças,não importa em que situações de precariedades existenciais,quando restringe prestação de cuidados ou mesmo se exime deprestá-los. Ampliam-se, assim, os sofrimentos dos doentes e dosfamiliares pela ausência de cuidados e tratamento dos usuáriosde saúde mental. Deixo aqui indagações iniciais para pensar aimportância da avaliação do processo de implantação da RPB,nas circunstâncias que estabelecem tanto a ausência de investimentopor parte do Estado em serviços substitutivos e comunitáriose de profissionais capacitados, como também a falta de cuidadosao familiares/cuidadores e a sobrecarga subsequente. Além disso,desvenda-se, nessa experiência, a atualização de novas formas deopressão das mulheres.Nota: As opiniões expressas neste artigo são da inteira responsabilidadeda autora.Referências BibliográficasALVES, Domingos Sávio. Integralidade nas Políticas de Saúde Mental.In: PINHEIRO, R. e MATTOS, R. A. (orgs.) Os sentidos da integralidadena atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: UERJ, IMS/ABRASCO,2001.________ e GULJOR, Ana Paula. O Cuidado em Saúde Mental. In: PINHEI-RO, R. e MATTOS, R. A. (orgs.) Cuidado: as fronteiras da integralidade.Rio de Janeiro: Hucitec/ABRASCO, 2004.118