Ir além dos direitos? Emancipação e política no campo da infância e juventudehistoricamente produzida, ou aquelas que forampercebidas como imanentes ao seu momento devida, levou ao estabelecimento de garantias jurídicasespecíficas. Significou que a sociedade terá que provere proteger crianças e adolescentes assegurando-lhesoportunidades e facilidades para seu “desenvolvimentosadio e harmonioso”. No entanto, do que se tratao desenvolvimento sadio e harmonioso de crianças eadolescentes não é esclarecido pela lei.Vale observar que proteger representa ganhos eperdas para as crianças e jovens. Proteger enseja práticasde tutela e controle delegando a outros que cuidem daquiloque os indivíduos mesmos ainda não podem cuidar por simesmos. Significa que os adultos – pais, famílias, sociedade,governo – assumam responsabilidades e deveres emfavor dos mais jovens. Como bem ressalta Sinclair (2004),proteger equivale, também, a retirar direitos, impedir queindivíduos ajam por si mesmos, falem em seu nome e estejamem posição de paridade em relação dos demais. Destemodo, assegurar direitos específicos a crianças e jovens, emnome de seu ‘estado peculiar de desenvolvimento’, significoutambém, o encaixe de crianças e jovens em posição de tutelafrente aos adultos e a obliteração de direitos de participação.Portanto, se crianças e adolescentes ganharam ‘proteçãointegral’ pelo fato de serem diferentes dos adultos, essa diferença,tal como foi concebida, os posiciona como tendo ainda queesperar a idade adulta para se apropriarem da cidadania plena,e consequentemente, estarem restringidos de participar amplamenteda vida social.Não é à toa que o ECA é, em geral, omisso em relação àparticipação de crianças: a participação não constitui nem umdireito específico, dentre os nomeados no art. 4º, nem tampouco,inspirará o texto da lei em outros pontos, que se resumirão a umlacônico “direito de expressão e opinião”, e à evocação do direitode participação política conforme estabelecido pela lei. Então, o quequero ressaltar aqui, é que a garantia de direitos específicos a criançase jovens, baseada numa concepção de incompletude desses sujeitos,serve também para regular – de cima para baixo - a vida de criançase jovens, desfavorecendo outros caminhos da emancipação juvenil.Não quero dizer que as crianças não devam ser cuidadas. Noentanto, o que quero assinalar é que a regulação pela lei das garantiasespecíficas que concedem proteção que não se faz sem perdas para essesmesmos sujeitos.151
Lucia Rabello de CastroPor outro lado, o progresso moral que tais leisespecíficas, como a do ECA, expressam - quandorepresentam a vulnerabilidade da criança como umvalor, e portanto, um algo a mais que a sociedadedeva atentar – revela transformações nos imagináriossociais (ou, se querem, nos campos identificatórios) emque a vulnerabilidade adquire valência positiva em vezde negativa. Exemplifico para esclarecer o argumento.Comparemos o momento de hoje com o de, digamos,500 anos atrás, quando da vinda dos portugueses para oBrasil nas grandes viagens marítimas. Naquele momento,em situações de risco de naufrágio, eram as crianças as queem primeiro lugar eram sacrificadas e jogadas em alto-marpara que os homens adultos pudessem se salvar com osrecursos que havia (Ramos, 1999). De seres imprestáveis, ecargas inúteis, sem nenhuma relevância na economia e napolítica no séc. XVI, e, ainda subsequentemente, por longotempo, as crianças, hoje, foram alçadas à condição de importância.Nelas se deposita a promessa do futuro, a esperançano mundo de amanhã. A vulnerabilidade de crianças que astornava sem préstimo na perspectiva dos quinhentos, tanto queeram as primeiras a serem jogadas no mar, hoje é vista comoum valor importante. A vulnerabilidade hoje garante a primaziapara crianças e adolescentes, quando se trata de seu socorro eproteção. No par. único do artigo 4º do ECA tem-se: “a garantiade prioridade compreende, a) primazia de receber proteção e socorroem quaisquer circunstâncias...(meus grifos), estabelecendo,portanto, uma total inversão em relação às práticas quinhentistas.Não foram exatamente as crianças que conseguiram que asociedade mudasse radicalmente o modo de considerar a infância e aadolescência. Crianças e jovens não foram os atores que contestaramsua posição de opressão reivindicando mudanças e garantias. Certamente,outros atores, adultos porta-vozes dos interesses desses segmentos,além de diferentes condições econômicas, culturais e políticasfizeram com que tais transformações acontecessem. Hoje, a proteçãoda criança se insere no quadro de preocupações sobre a continuidadesocietária. Para alguns, por exemplo, da proteção das crianças e doseu desenvolvimento saudável, dependerá a aposentaria e a velhicetranquila de toda uma geração. São eles, as crianças e jovens de hoje,que pagarão a conta, seja dos benefícios do sistema, seja dos gastos edesperdícios não resgatáveis. Por isso mesmo, elas têm que se prepararna escola, e o direito à educação neste viés, torna-se uma obrigação cívica.Wintersberger (2001), parafraseando Marx, ressalta, por exemplo, que semáquinas são vistas como trabalho vivo coagulado, então as qualificaçõesbásicas de adultos ocupados, necessárias à sociedade industrial, nada maissão do que trabalho infantil coagulado. Para este autor, o valor das criançasna sociedade moderna deve-se tanto à segurança existencial da geração152