Uma Epopeia entre o Sagrado e o Profano: - Estudo Geral ...
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acorrentado e até mesmo do cão hidrófobo e hibridizado, todos eles passíveis de uma<br />
interpretação ligada à ilustração de defeitos e pecados e à indução de conclusões<br />
moralizadoras.<br />
No primeiro caso, temos como que um cruzamento de referências <strong>entre</strong> o<br />
bestiário, o fabulário greco-latino e a cultura popular dos provérbios, na medida em que<br />
a imagem do cão que rói ou transporta um osso na boca reporta-se tão facilmente aos<br />
pecados da inveja e da cobiça, como às fábulas do Cão e a Sombra e do Cão<br />
Invejoso 277 , repetidas vezes sem conta nas várias edições e versões das Fábulas de<br />
Esopo, como ainda à expressão popular “dois cães a um osso.” Trata-se, como a grande<br />
maioria das imagens que se incluem nessa categoria inquieta da marginalia, de uma<br />
referência visual com profundas raízes no pensamento e na oralidade popular e profana,<br />
cuja eficiência na transmissão de mensagens moralizadoras depressa foi apropriada pela<br />
Igreja. Daí que possamos encontrá-la plasmada em diversos suportes, ao longo de vários<br />
séculos e em territórios distintos, nomeadamente, e a nível literário, na obra de Geoffrey<br />
Chaucer (The Canterbury Tales, 1387-1400), onde encontramos já esta associação do<br />
cão à cobiça vã: “We strive as the hounds did for the bone/they fought all day, and their<br />
share was none”. 278<br />
Segundo Paulo Pereira, ao traçar um claro paralelo <strong>entre</strong> estes motivos caninos<br />
do cadeiral crúzio e os da tábua de Cristo e o Centurião, da Charola de Tomar (c.1510),<br />
“o cão que rói é uma imagem negativa, síntese do mal” 279 . A propósito desta pintura,<br />
aliás, é necessário salientar a representação simultânea das duas visões do cão que<br />
vimos já plasmadas no bestiário e no pensamento da época: o cão negro que rói um osso<br />
é acompanhado pelo cão branco, sereno e fiel, algo que, na opinião de Dagoberto Markl<br />
e Fernando António Pereira que não só representa “um verdadeiro mistério”, pela<br />
implicação do “combate <strong>entre</strong> o bem e o mal, <strong>entre</strong> a virtude e o vício” 280 , como indicia<br />
também uma cultura artística especificamente flamenga. Ora, se como Paulo Pereira<br />
bem esclareceu, a preferência iconográfica pelas psicomaquias foi tão comum no meio<br />
277 Vide Vol. II, Anexo II, Figs. 92 e 93.<br />
278 No original “We stryve as dide the houndes for the boon; They fought al day, and yet hir part was<br />
noon.” CHAUCER, Geoffrey, The Canterbury Tales (The Knight‟s Tale), l. 1177 e 1178 (in<br />
http://www.courses.fas.harvard.edu/~chaucer/teachslf/kt-par1.htm)<br />
279 PEREIRA, Paulo. A Obra Silvestre e a Esfera do Rei, p. 171.<br />
280 MARKL, Dagoberto e BAPTISTA PEREIRA, Fernando António. “História da Arte em Portugal”,<br />
Lisboa, Publicações Alfa, 1986, vol. 6, p. 89.<br />
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