Uma Epopeia entre o Sagrado e o Profano: - Estudo Geral ...
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oferecerem a uma leitura complexa de níveis sucessivos e mais ou menos interligados<br />
que frequentemente resultam em jogos de palavras e de sentidos, em conjugações de<br />
referências e de sentidos por vezes opostos.<br />
Por fim, e num âmbito mais específico, a exposição gratuita dos genitais nestas<br />
sucessivas versões de um Noé ébrio, não pode deixar de ter subjacentes implicações<br />
eminentemente sexuais, associadas tanto à vulnerabilidade quanto ao pecado. Na<br />
possibilidade de ter havido alguma recuperação do sentido bíblico da expressão “expôr<br />
a nudez do pai”, estas imagens seriam referências mais ou menos directas a um<br />
comportamento incestuoso, <strong>entre</strong> filho e mãe, ou <strong>entre</strong> o filho e a mulher/concubina do<br />
pai. Ao que parece, esta expressão seria utilizada como eufemismo destes mesmos<br />
comportamentos no Pentateuco e no Levítico: “Se um homem teve contacto sexual com<br />
a mulher de seu pai, ele expôs a nudez de seu pai” 357 ; “Não podes manter contacto<br />
sexual com a mulher de teu pai; ela é a nudez de teu pai.” 358 . Mesmo que não seja este<br />
o sentido primordial das representações em questão – até porque o suposto perpetrador<br />
da abominação teria sido Cam e ele encontra-se ausente da misericórdia de Santa Cruz –<br />
a nudez de Noé não deixa de implicar vulnerabilidade a um qualquer pecado de carácter<br />
sexual, exponencialmente potenciado pelo ócio e pela bebida. Trata-se, uma vez mais,<br />
de uma presença justificada pela necessidade de glosar e satirizar comportamentos,<br />
incluída na função habitual dos exempla, razão pela qual parece demitir-se quase em<br />
absoluto do contexto religioso e bíblico que lhe serviu de modelo primordial.<br />
Outro curioso exemplo da apropriação de personagens ou episódios bíblicos com<br />
vista à transmissão de mensagens que vão um pouco mais além do seu sentido inicial é<br />
o dos Emissários de Moisés, que encontramos sobre o painel terminal da cadeiral<br />
prioral 359 . Enviados a Canaan, Josué e Caleb, trazem um cacho de uvas gigantesco para<br />
provar a Moisés a fertilidade da região e, sendo os únicos portadores de uma mensagem<br />
positiva (portanto, os únicos que não se sublevam, descontentes, contra o profeta), são<br />
também os únicos a serem poupados ao castigo do seu povo. Esta não é, porém, como<br />
bem refere Augusto Nunes Pereira, a razão do interesse iconográfico deste motivo,<br />
longamente interpretado como a representação dos dois Testamentos, ou mais<br />
especificamente a Sinagoga e a Igreja, carregando ambas a cruz (a vara de onde pendem<br />
357 Bíblia, Levítico 20:11<br />
358 Bíblia, Levítico 18-8<br />
359 Vide Vol. II, Anexo I, inventário de esculturas dos painéis terminais e laterais (EPT6e).<br />
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