Uma Epopeia entre o Sagrado e o Profano: - Estudo Geral ...
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de Judas a ser engolido por uma espécie de dragão 373 que prefigura os seus tormentos no<br />
Inferno, já descritos por Dante. Este poderia ser, eventualmente, o episódio evocado no<br />
cadeiral de Coimbra, no entanto parece-nos que o contexto aqui é bem mais específico e<br />
se reporta a um desfecho talvez moralizante mas sobretudo humorístico e satírico da<br />
ousadia do entalhador de misericórdias – esse sim, um transgressor da ordem<br />
estabelecida e dos limites tradicionalmente impostos, criador de demónios insidiosos<br />
que vagueiam pelas margens do religioso e do humano sempre prontos a destabilizar e a<br />
destruir. As mesmas roupas, a mesma escala, o mesmo tratamento da figura humana<br />
(diferente das misericórdias que nos apresentam as figuras nuas dos homens “decaídos”)<br />
e até do material, fazem-nos ver nestas duas misericórdias dois episódios da mesma<br />
narrativa.<br />
1.1.6. O híbrido, o grotesco e as punições infernais<br />
O hibridismo, ostensivamente utilizado no cadeiral de Santa Cruz como agente<br />
de desconforto e de repulsa, surge aplicado à figura humana em apenas duas ocasiões. A<br />
primeira corresponde à figura híbrida da misericórdia 49, que tem sido identificada<br />
como símbolo da luxúria. A volúpia desta criatura é tão insidiosa quanto a estranheza do<br />
seu hibridismo: na verdade, a sua conjugação com a misericórdia seguinte é bem<br />
reveladora de um recurso à utilização binária de temas, como já referimos, e sobretudo<br />
da preferência das formas humanas nuas e das formas híbridas semi-humanas vestidas,<br />
como representação de pecados e vícios. Esta segunda opção voltamos a encontrá-la,<br />
por exemplo, na igreja de Saint-Pierre de Saumur 374 . A misericórdia seguinte (M50)<br />
apresenta também uma híbrida, ora identificada como símbolo do desespero 375 ou uma<br />
amarga sátira ao judeu 376 ora como uma personagem carnavalesca 377 . Seja qual for o<br />
seu real significado, ele estará decerto, e como bem notou Augusto Nunes Pereira,<br />
relacionado com a figura da Luxúria, com a qual partilha “a mesma posição, a mesma<br />
degradação, o mesmo hibridismo” 378 . Será, portanto, a ilustração de um vício ou de um<br />
373 Vide Vol. II, Anexo II, Figs. 156 e 157.<br />
374 Vide Vol. II, Anexo II, Figs. 158 e 159.<br />
375 PEREIRA, Augusto Nunes, Do Cadeiral de Santa Cruz, p.106<br />
376 BRAGA, Maria Manuela Braga, Os Cadeirais de Coro no Final da Idade Média em Portugal, p. 11.<br />
377 BLOCK, Elaine C., Corpus of Medieval Misericords: Iberia, p.8.<br />
378 PEREIRA, Augusto Nunes, Do Cadeiral de Santa Cruz, p.106.<br />
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