Uma Epopeia entre o Sagrado e o Profano: - Estudo Geral ...
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na catedral inglesa de Hereford 355 , como em Santa Cruz, este Noé é representado<br />
sozinho, com a cabeça apoiada numa almofada e as roupas abertas expondo os genitais.<br />
Efectivamente, e sabendo que ao longo da Idade Média se foram “aclimatando”<br />
de forma peculiar vários temas bíblicos, torna-se compreensível que esta transposição<br />
da embriaguez de Noé para o mundo dos exempla – pois é isso que nos parece ser –<br />
tenha acabado por secundarizar bastante a mensagem inicial/bíblica do episódio. Aquilo<br />
que agora parece interessar realmente é, não tanto a falta de Cam ao desrespeitar a<br />
intimidade do seu pai e ao não saber manter segredo, comprazendo-se na difamação,<br />
mas sim a indolência e o indecoro de um homem ébrio e descomposto, vulnerável ao<br />
olhar e ao riso. Assim, parecem evidenciar-se pelo menos três aspectos passíveis de<br />
associar este motivo à categoria dos exempla (tendo sempre em atenção que a divisão da<br />
marginalia em categorias é sempre um processo artificial e parcial e que raramente uma<br />
imagem tem, no contexto das margens, um único objectivo): o desleixo associado à<br />
embriaguez, a própria preguiça votada à sátira e a exposição da nudez 356 .<br />
Sem pretender aplicar as fases de uma análise iconológica panofskyana à<br />
representação da embriaguez de Noé, não podemos deixar de admitir que ela se oferece<br />
a uma espécie de leitura em níveis, potenciadora de várias associações passíveis de criar<br />
uma interpretação global. De facto, a partir de um contacto básico e meramente visual, o<br />
que vemos é nada mais que um homem adormecido, com a cabeça apoiada numa<br />
almofada, em posição lânguida e com as vestes ostensivamente abertas. O desleixo<br />
implícito na figura deste homem bem vestido e indolentemente adormecido poderá,<br />
eventualmente, relacionar-se ainda com a advertência satiricamente contida num<br />
provérbio alemão que, no fundo, faz parte do fundo cultural de toda a Europa: Wie man<br />
sich bettet, so liegt man, literalmente “tal como te deitas, assim ficarás” ou “fizeste a<br />
cama, agora deita-te nela”, ou seja, a conhecida advertência “quem bem fizer a cama,<br />
bem se deita nela”.<br />
A um nível eventualmente mais metafórico e menos palpável, a relação desta<br />
imagem com o pecado capital da preguiça, apontada por Augusto Nunes Pereira,<br />
adquire um sentido óbvio, sendo perfeitamente possível que a imagem fosse também<br />
lida nesse contexto. As imagens da marginalia têm, aliás, esta particularidade de se<br />
355 Vide Vol. II, Anexo II, Fig. 144.<br />
356 Vide Vol. II, Anexo II, Figs. 145 a 147.<br />
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