Uma Epopeia entre o Sagrado e o Profano: - Estudo Geral ...
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implicava obviamente uma mudança de sentido ao nível da decoração, dos seus motivos<br />
e das suas motivações.<br />
Sem se esvaziar de significado ou sentido, o grutesco separa-se, isso sim, da<br />
possibilidade de interpretação imediata e imediatamente remetida para o âmbito algo<br />
hermenêutico da apreensão de situações e comportamentos com vista a despoletar<br />
reacções mentais e morais muito concretas no observador. De facto, ainda que o uso do<br />
grutesco no cadeiral crúzio deva ser colocado numa ténue linha de prolongamento dos<br />
motivos decorativos iniciais, ele já não se inscreve nessa tentativa de controlo e<br />
formatação dos comportamentos humanos por parte da Igreja, quer como elemento<br />
adjuvante (pela sua função apotropaica), quer como meio de coacção e intimidação. Na<br />
verdade, o humanista, ainda que cristão, não necessitava desse tipo de mecanismos de<br />
controlo para se construir enquanto ser intelectual e moral – a razão, aliada ao livre<br />
arbítrio e a uma leitura serena dos princípios da sua religião, bastavam-lhe. No entanto,<br />
o facto de o homem do Renascimento se ter a si mesmo sob controlo não implica que<br />
controlasse igualmente esses elementos mais obscuros do mundo e da psique humana,<br />
nem tampouco que deixasse de se servir da decoração e do ornamento para catalisar<br />
esses sentimentos, impressões e fascínios. É neste sentido que a miríade de víboras,<br />
golfinhos e aves metamorfoseadas em rebuscadas composições fitomórficas ou apenas<br />
hibridizadas pelo elemento vegetal, que encontramos esculpidas no cadeiral sob a<br />
plástica do grutesco, complementa a mensagem de criação patente no seu programa<br />
iconográfico inicial.<br />
Em suma, podemos assumir que as implicações da leitura deste registo inferior do<br />
cadeiral crúzio são fundamentais para a compreensão do discurso odisseico (nas<br />
deambulações), triunfalista (no optimismo das vitórias) e historicista (na consciência de<br />
um tempo presente) patente no seu registo superior. Consecutivamente colocado no<br />
dealbar de novos tempos cronológicos, culturais e estéticos, conferidores de<br />
características paradoxais e aspectos de transição, o cadeiral de Santa Cruz não deixou,<br />
todavia, de se pautar por uma intensa coerência histórica e simbólica, assumindo-se<br />
sempre como resultado e reflexo de uma <strong>Epopeia</strong> <strong>entre</strong> o <strong>Sagrado</strong> e o <strong>Profano</strong>.<br />
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