Uma Epopeia entre o Sagrado e o Profano: - Estudo Geral ...
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eligiosas. Esta mesma relação <strong>entre</strong> a liturgia e o gesto – desenvolvida em moldes de<br />
rigorosa predefinição e atingindo por vezes uma grande complexidade ritual, à qual não<br />
faltavam regras de precedência – que condicionou a introdução e a forma dos diversos<br />
tipos de sedes no espaço religioso, acabaria por ter, segundo cremos, implicações ao<br />
nível da própria iconografia dos cadeirais de coro, cujos núcleos temáticos se foram<br />
fixando de acordo com uma autêntica hierarquia de espaços, ditada precisamente pela<br />
proximidade com o corpo daqueles que os ocupavam.<br />
Trata-se, na verdade, de uma constatação bastante óbvia, sobretudo quando se tem<br />
em vista a explicação do conteúdo esmagadoramente profano da iconografia das<br />
misericórdias, algo que Louis Maeterlinck já havia apontado no início do século XX 4 e<br />
que posteriormente autores como Dorothy e Henry Kraus resumiram nestas palavras:<br />
“The clerics were delicate about allowing the lower body to be in contact with the effigies of<br />
Christ, Mary, or the Apostles. This single circumstance had a fateful influence on the entire<br />
evolution of misericord imagery.” 5<br />
Constatação óbvia que raramente, senão nunca, extrapola o âmbito da análise das<br />
misericórdias para um contexto mais abrangente, ela conduz-nos a um inevitável<br />
exercício comparativo <strong>entre</strong> os diversos territórios iconográficos de que um cadeiral de<br />
coro se compõe, nomeadamente, apoia-mãos, painéis laterais e respectivos terminais,<br />
<strong>entre</strong>-panos e coroamento. Rapidamente se compreende, então, que o ambiente<br />
contaminado das misericórdias – contaminado pelo quotidiano secular, pelos<br />
testemunhos vívidos de uma mentalidade popular por vezes idilicamente próxima da<br />
natureza, por vezes perfeitamente goliardesca, apreciadora de jogos de palavras e de<br />
imagens, de mnemónicas visuais e de sátiras contundentes – se dissemina pelos<br />
territórios que lhe estão mais próximos e que, tal como elas, constituem espaços<br />
periféricos. Efectivamente, é com facilidade que encontramos imagens de conteúdo<br />
escatológico ou licencioso, só para referir exemplos mais inusitados, tanto nos apoia-<br />
mãos como nos interstícios dos relevos dos painéis laterais, cujo espaço principal fica<br />
normalmente reservado para episódios do Velho ou do Novo Testamento, cenas<br />
hagiológicas ou referências heráldicas, e sobretudo nos terminais esculpidos destes<br />
painéis. No entanto, e na maioria dos casos, trata-se mais de uma diluição temática do<br />
4 Cf. MAETERLINCK, Louis. Le Genre Satirique Fantastique et Licencieux dans la Sculpture Flamande<br />
et Wallone, Paris, Jean Schemit, Libraire, 1910, p. 12-13.<br />
5 KRAUS, Dorothy and Henry. The Hidden World of Misericords. George Braziller, New York, 1975, p.<br />
ix.<br />
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